O DEUS DE BRASÍLIA É UM BEZERRO DE OURO








Muitos de nós ficamos indignados com as reiteradas referências morais e religiosas que fizeram parte do espetáculo enfileirado da tarde de ontem no corredor central da Câmara dos Deputados. A justificação do voto de uma parcela significativa dos senhores deputados e deputadas revelou um fenômeno que faz parte do cotidiano de nosso país nas últimas décadas: o crescimento do conservadorismo patrocinado pelas igrejas de viés neopentecostal e sua intensiva expansão política por meio da chamada Bancada da Bíblia. Não quero generalizar e muito menos parecer discricionário, mas parece evidente que esse movimento reacionário ultrapassou as paredes dos templos (alguns pequenos e improvisados, outros portentosos e suntuários) por meio de uma pregação cotidiana de cunho político-ideológico fundamentalista, que opõe o bem ao mal de uma forma tão simplista quanto perigosa tanto nos altares quanto nas televisões da nação. Essas Igrejas hoje representam quase cinquenta milhões de brasileiros e sua representatividade na Câmara aumentou mais de trinta por cento no último pleito eleitoral.
À força desse movimento junte-se o recuo das igrejas tradicionais quanto às questões sociais e à articulação entre fé e política, amplamente abominada nos anos dos papados de João Paulo II e Bento XVI. Isso fez com que alas antes atuantes em favor dos direitos humanos e de políticas sociais inclusivas, fossem isoladas e contidas, diante dos novos fenômenos do show-missa e dos padres cantores. Por consequência, a interpretação social do evangelho e as preocupações com as estruturas de opressão da população menos favorecida, acabaram dando lugar a velhas teologias, muitas das quais amparadas em visões eclesiais subjetivistas e reduzidas ao discurso da prosperidade e da moralização da vida em geral. Não são poucos os jovens membros das classes mais pobres que chegam aos seminários com o afã de vestir suas túnicas e clérgimas, símbolos do poder e do desejo de posse e de conforto, sob o custo de esquecerem completamente suas realidades de origem e os anseios de sua gente. Reduzindo sua ação, quando muito, à caridade que não transforma, mas apenas mantém as desigualdades, e acomodados em suas poltronas de veludo, muitos desses religiosos celebram o mesmo Deus dos Cunhas, Malafaias e Felicianos. Ontem mesmo, nas redes sociais, não foram poucas as manifestações de muitos desses jovens a favor da destituição da atual presidente.
A chamada Bancada da Bíblia é responsável por levar ao mundo da política os ideais defendidos em seus altares noite a noite. Trata-se de dar revestimento de lei a temas de moral religiosa absolutamente duvidosa. Com isso, eles impõem a toda a sociedade o que são crenças e “valores” de uma parcela da população, entre os quais está o projeto da “cura gay”, o estatuto da família, a diminuição da menoridade penal, a redução dos direitos de mulheres violentadas sexualmente e a autorização do porte de armas, entre outros temas polêmicos. A conta de ontem, portanto, parece óbvia: a bancada da Bíblia tem hoje, na Câmara, 197 deputados. Muitos de seus interesses são partilhados com a chamada bancada do boi, que tem pelo menos 207 parlamentares e a bancada da bala, que soma 35. Os dados são da revista Exame (!), que em seu raio-x de fevereiro desse ano, criou o curioso agrupamento dos “parentes”, com 238 parlamentares. Enquanto isso, a bancada dos direitos humanos é formada por apenas 24 deputados. Não é de se estranhar que as falas de ontem tenham evocado “Deus”, “família” e outros assuntos que podemos resumir sob a ideia de “propriedade”. Essa trindade tem sido apontada como sinônimo de ameaça aos direitos humanos ao longo da história e ela concretiza não só o anacronismo de nossa política, mas a sua perversidade, envolta no malcheiroso enxofre que alguns sentiram ontem na Câmara.
Muitos estão cientes de que as bandeiras dos direitos humanos não são precisamente bandeiras religiosas e nem sequer nasceram das Igrejas. É fácil reconhecer, contudo, uma longa tradição de apoio a essas lutas, algo que remonta aos primórdios do processosde colonização da América (penso especialmente nos frades dominicanos Antonio Montesinos e Bartolomeu de Las Casas), à luta contra a ditadura militar, ao trabalho de educação popular, à ação das pastorais sociais e das comunidades eclesiais de base - só pra ficar no nosso continente. Muitas pessoas que estavam na luta contra o impeachment de domingo são oriundas desses movimentos e, mesmo isoladas, continuam atuando a favor dessas bandeiras. Conheço muita gente séria que está nessas trincheiras, muitas, como o padre Josimo e a irmã Dorothy, inclusive, perderam a vida por enfrentar, no cotidiano, a luta pela justiça social. Conheço jovens que fazem da religião um instrumento de liberdade. Conheço gente séria em todas igrejas e que caminham de par com os defensores dos direitos humanos (insisto: não quero igualar esses movimentos).
Muitas dessas pessoas estão incomodadas com o Deus de Brasília. Talvez para elas, as referências da fila, as bênçãos e orações que davam ar sagrado aos votos individuais dos parlamentares, não passem de cultos idólatras a um novo bezerro de ouro, como aquele retratado por Nicolas Poussin no desenho acima, em torno do qual o povo alienado dançava, enquanto Moisés demorava-se com Deus no monte Sinai. As falas de domingo à tarde e a dança abjeta em torno dos aparatos da mídia, talvez sejam só um sinal de que o Deus de Brasília não passe mesmo de um ídolo e que ali, entre microfones e câmeras, Moisés há de chegar com a ira das divindades...




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