CARTA PARA O CÉU




 


Eita meu irmão. Hoje faz três anos que você se foi. Acordei pensando, meio em dúvida e sem quase lucidez, na passagem desse tempo pesado e dolorido, que é o tempo das ausências, o tempo dos sigilos, das secas, dos passos insones pela casa, da lágrima fugidia, das canseiras sem explicação.

 

Pascal e Kant falaram do céu como o lugar do silêncio. É para lá que a gente olha quando quer se encontrar contigo. Tem a ver com essas coisas do infinito desconhecido, da quietação imensa, alguma serenidade talvez. Mudo, o céu está carregado de brilhos anônimos, de segredos escondidos. Mudo, o céu guarda o pó das estrelas do qual, dizem, são feios os nossos corpos provisórios, os que estamos aqui embaixo, você aí em cima... é o pó das estrelas que forma novos laços. Mudo, o céu é inteiro habitado por você, ainda mais aquele brilhoso e estridente, que se deita todas as noites sobre a Bom Retiro, deslizando sobre a casa, abençoando os nossos pais, os porcos, as galinhas e os cachorros que estão lá, como sempre estiveram, em ritmo de espera.

 

Hoje o tempo pareceu confuso. É que ele parece parado, prostrado ainda naquela beira de estrada, ao lado do rio, perto da ponte, sobre o asfalto. Tua vida suspensa, inconclusa, distante de tudo, dividiu as nossas ao meio. Tudo é antes, sabe? Um tempo estranho que é sempre saudade, lembrança, pesar... Mesmo quando a gente se esforça para falar de coisas boas, lembrar as tuas risadas, as palavras que inventava, teus gostos e nossos carnavais. Mesmo ali, é difícil disfarçar, sabe? Mesmo sabendo (nós cantamos isso tantas vezes, juntos, de tantas formas) que "um dia a gente chega, outro vai embora". 

 

Aí no céu você é outra alegria! Placentário, esse véu de estrelas cujas franjas são feitas de pequenos vagalumes (aqueles mesmo de nossa infância) é o teu descanso e proteção. Deve ser bom dormir e acordar todo dia numa vida dessas... "Boi alado, alazão sideral" (lembra?).


A tua superfície é pele aérea de sereno. E às vezes, como agora, tua presença é chuva no cerrado, casal de araras atravessando o pátio, família de macacos festejando na baixada. Riqueza pobre do mundo que foi teu com a devoção das simplicidades que só você – ninguém mais – soube o que era.

 

Um abraço meu irmão. Sob o céu, à sombra dos deuses, sobre a terra e entre os mortais, nós continuamos chorando de saudade.



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