DUAS LIÇÕES DO CORONAVÍRUS: JÁ SABEMOS O QUE DEVE SER FEITO, MAS AINDA NÃO SABEMOS SE QUEREMOS FAZÊ-LO






A situação inédita que estamos vivendo, ainda está para ser compreendida e explicada. Há muitas hipóteses. Dois aspectos, contudo, se sobressaem: o coronavírus, de um lado, evidencia que os políticos brasileiros, encabeçados pelo presidente da república e seu ministro da fazenda, estão aproveitando a pandemia para avançar a planejada pauta neoliberal que ameaça as garantias sociais e os direitos humanos; e de outro, que nossas duas maiores crises civilizacionais (a desigualdade social e a emergência climática) permanecem como desafios para agora e depois.


DESIGUALDADE SOCIAL

A pandemia evidenciou o maior e mais infame aspecto de nossa sociedade: a desigualdade social que persiste no Brasil como um câncer, desde sempre. Se é verdade que o vírus entrou no país pela casa das elites viajantes, agora a taxa de letalidade vem aumentando exorbitantemente nas áreas periféricas e interioranas e nas regiões mais carentes, onde falta estrutura e quase tudo. Nesses lugares estão populações com menos condições de cumprir as regras da quarentena e, por isso, correm mais riscos, porque em sua maioria, trabalham para sustentar o sistema, seja atendendo em supermercados, fazendo entregas para aplicativos, cuidando de enfermos nos hospitais, coletando lixo etc.. Além disso, tal parcela de nossa sociedade não tem acesso aos serviços adequados de saúde, conquanto ficam doentes mais facilmente e, com isso, precisam mais de serviço de saúde público e gratuito. Precisamos perguntar quem são os mortos jogados nas valas comuns do Amazonas e do Pará; quem está morrendo em casa, isolado e sozinho, sem luz, sem água e sem emprego; quem espera nas filas da Caixa Econômica à espera dos mínimos recursos disponibilizados como socorro diante da fome... A desigualdade também se revela no acesso à educação e à tecnologia: descobri, agora, que muitos de meus alunos não têm acesso à internet em casa, que não têm computador e sequer têm uma casa com espaço adequado para o estudo. Segundo o IBGE, 18 milhões de pessoas não têm água encanada para lavar as mãos – medida básica para a contenção da doença. Há muitos outros exemplos, todos explicados pela vergonhosa concentração de renda e pela indecorosa negação dos direitos básicos da maior parte da população brasileira: segundo o IBGE (PNAD), em 2019 os 1% mais ricos tiveram uma renda 33 vezes maior do que os outros 50% dos habitantes.

EMERGÊNCIA AMBIENTAL

No Brasil, enquanto o COVID-19 se espalha e a pandemia afeta não só desconhecidos, mas também amigos e familiares, a destruição da floresta amazônica cresce a índices intoleráveis. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) indicaram um aumento de 51,45% de alertas de desmatamento no primeiro trimestre de 2020 em relação ao mesmo período de 2019: de 525,63 km² para 796,08 km². Além disso, favorecida pelo discurso oficial, a invasão das terras indígenas demonstra que as forças ecocidas dos garimpeiros e madeireiros estão em plena expansão. O clima pandêmico potencializou os processos de desmantelamento dos órgãos ambientais e precarizou ainda mais o trabalho das entidades indigenistas e dos organismos de vigilância. A entrada de invasores, além do mais, tem colocado em risco a vida das populações indígenas. Invasões geram conflitos, degradação ambiental, infecção e morte. Isso nunca foi tão evidente como agora.

Há outro dado, contudo, que a agenda mundial da emergência climática está incluindo: a quarentena tem nos obrigado a repensar o modo de relação econômica baseado, até aqui, na produção e no consumo. Mesmo diante da gravidade da crise ambiental, à maior parte de nós parecia impossível imaginar fazer o que era necessário: reduzir a velocidade das máquinas. A calamidade ambiental foi atropelada pela calamidade sanitária e, de um dia para o outro, com muitos custos, tivemos de desacelerar o sistema. Dados do Painel do Clima da ONU dão conta que a redução da emissão de gases poluentes diminuiu consideravelmente (há quem fale em 8%), bem perto do que seria necessário para salvar o planeta. Mas não de forma provisória, por poucas semanas ou meses, senão de forma definitiva, para sempre. O vírus, assim, mostra que somos capazes de assumir a responsabilidade que cabe à nossa geração. Repito: embora o custo seja altíssimo em termos de vidas humanas, emprego e aumento da miséria, o coronavírus forçou a fazer o que precisava ser feito voluntariamente.

Para um olhar apressado, aparentemente estamos diante de um velho enigma: a civilização versus a natureza; ou mantemos a desigualdade social ou protegemos o meio ambiente. Mas esse é um falso dilema. Se o COVID-19 nos mostrou o que deve ser feito e que tal coisa é possível, ele também nos desafia a recalcular as coisas, de tal forma a enfrentar essa aporia, diante da qual precisamos planejar e estabelecer os critérios que nos impeçam de simplesmente voltar ao que era antes, como se nada tivesse acontecido. Não podemos sair da peste sem termos mudado os nossos corações, como escreveu Camus - não o nosso coração individual, mas o coração da nossa sociedade, ou seja, o seu sistema econômico. Ao planejarmos a retomada econômica e a geração de empregos e renda para as populações que sobreviverem à pandemia, é preciso repensar as bases sobre as quais queremos erguer o nosso futuro. Precisamos chegar do lado de lá tendo construído alternativas, não apenas para que possamos estar melhor preparados para esse tipo de evento (o que sem dúvida passa pela redução das desigualdades sociais e pela proteção dos direitos humanos) mas, sobretudo, para que possamos construir uma economia nova, que inclua formas de vida capazes de conviver com a natureza de forma eticamente responsável. Só assim de fato teremos aprendido a lição do vírus.






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