APROVEITE A HORA E PASSE ÁLCOOL GEL TAMBÉM O ESPÍRITO






De tempos em tempos, a vida exige seus tributos. Pode ser um nevoeiro interior, alguma tempestade afetiva, um horizonte apagado, uma mudança drástica de rumos. Pode ser, como agora, uma catástrofe inédita, um medo generalizado que nos tranca em casa, impede proximidades e exige outras atuações. A sociedade é uma casa de penhores onde tomamos emprestadas as condições da vida, a juro alto. De tempos em tempos, a gente precisa fazer um balanço, anotar os dispêndios um a um, abrir as gavetas, as arcas e os cofres. Rearranjar os centavos, pagar as cedências e livrar-se das sujeiras. O nome disso é faxina.

De tempos em tempos, precisamos de honestas sessões de limpeza interior. Abrir os escaninhos do ser, os baús e as caixas cheias de coisinhas inúteis. Todo mundo precisa de um paninho de algodão e uma dose de álcool gel para purificar o espírito, recuperar o asseio e a sanidade. Nas profundezas do ser, onde mora o silêncio, fazemos nossa toalete espiritual e, limpos, poderemos de novo ver e ser vistos, como somos.

Porque, afinal, de tempos em tempos, a superficialidade da vida exige aprofundamento e interioridade. Gestos mais demorados devem substituir a pressa; olhar mais atento, a distração cotidiana; tagarelices, o silêncio revigorante. É hora de purificação. Como aquela poça d’água na beira do caminho descrita por Nietzsche, descemos às próprias profundezas para nossas higienes. No escuro da solidão, limpamos a sujeira que nos tira nitidez e transparência e saímos na beira de outro caminho, límpidos de novo, para dar de beber a outros andarilhos.

Sob as bênçãos de Vesta, aquela deusa do fogo, moradora das lareiras, cultuada nas casas gregas e romanas como sinal do encontro e do cuidado, podemos aproveitar a hora para recuperar o foco. Quando tudo nos desconcerta e desconcentra, que o tempo de agora seja de solidão preparatória, profilática, higiênica. Quando param os barulhos, as velocidades dos automóveis, as pressas das agendas; quando cessam os aviões de cortar o céu, os trens lotados de lá para cá, as ilusões de desempenho e as alucinações de lucro e outros egoísmos... quando atenuamos a ânsia, possamos nos reconcentrar. 

Como um personagem de Vermeer, atirado ao seu aconchego melancólico, a solidão da casa nos sirva de novo de aconchego. Embora seja vasto o mundo, de tempos em tempos precisamos voltar pra casa, tirar os calçados, acariciar nosso cãozinho olhando nos seus olhos com novas purezas, como quem salva a si mesmo do caos.








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