LIBERAÇÃO DE AGROTÓXICOS NO BRASIL: COANDO MOSQUITO E ENGOLINDO CAMELO







A água é uma necessidade e um direito de todos os seres vivos. Até onde temos conhecimento, toda forma de vida depende da água. Um ser humano é feito 70% de água e depende de água para viver: uma pessoa pode ficar, no máximo, uma semana sem água. Depois desse tempo o organismo começa a entrar em colapso. E porque a água é tão necessária para a manutenção da vida, ela se transformou em um grande negócio. Baseadas num discurso de “escassez da água” e da primazia de seu valor econômico, empresas como a Coca-Cola, a Nestlé e a Danone estão ganhando “rios de dinheiro” com a mercantilização da água. Em muitas cidades do mundo bebemos água dessas empresas a preços exorbitantes. Basta comparar o preço de uma garrafa de água (quatro a cinco reais) e logo vemos que o negócio é muito lucrativo. Hoje o litro de água vale mais do que um litro de gasolina. É o que se chama de “petrolização da água”, ou seja, a agregação de valor de mercado a “um bem de destinação universal”, como declarou o texto da Campanha da Fraternidade 2004 promovida pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

Ora, o mesmo sistema internacional que torna a água um bem de mercado, o “ouro azul” do novo milênio, espalha a poluição e a destruição dos rios, nascentes e águas subterrâneas do mundo. O discurso da chamada “oligarquia da água” está baseado no seguinte argumento: se a água é tão necessária à vida e se ela está sendo poluída e desperdiçada pela população mundial, então a saída seria colocar um preço na água, ou seja, torná-la um bem de mercado. Os defensores deste enredo acreditam, como é seu costume, que o mercado pode regular o uso da água: se as pessoas tiverem que pagar caro pela água, vão pensar duas vezes antes de deixarem uma torneira pingando ou jogarem lixo nos rios. Ao invés de conscientizar a população sobre a importância da água, essas empresas querem punir os responsáveis pelo desperdício e pela poluição e, por tabela, lucrar com a venda da água, que, segundo um estrategista da Monsanto (adquirira em 2006 pelo grupo Bayer) declarou, “é a última fronteira de investimento para o setor privado”.


Você poderia se perguntar porque um funcionário da Monsanto está interessado no assunto da água. Ocorre que esta empresa conhecida dos agricultores/as em todo o mundo, é um dos nomes mais fortes da oligarquia internacional e tem em vista o domínio do mercado de água na produção de alimentos. O nome da Monsanto, assim, aparece ao lado das grandes empresas que estão em processo acelerado de domínio da água em nível mundial: no mercado da água mineral as três gigantes Coca-Cola, Nestlé e Danone; no abastecimento urbano as francesas Vivendi (que havia comprado parte da Sanepar durante o governo Lerner), a Suez e a alemã RWE[1]; na produção de energia a partir das hidrelétricas, a Tractebel (subsidiária belga do conglomerado empresarial francês da Suez S/A, já é proprietária de 2 hidrelétricas no Rio Iguaçu: Salto Segredo e Salto Santigado)[2]. Estima-se que a Tractebel obtenha um lucro de 800 mil reais por dia com a Usina de Salto Santiago e gaste menos de cinco reais para gerar 1 megawatts da energia. Isso explica porque o preço da energia elétrica aumentou mais de 400% depois da privatização do setor, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Trata-se de um “roubo legalizado”. O cálculo é simples: o modelo de agricultura promovido pela Monsanto é o modelo da monocultura extensiva, baseada no uso indiscriminado de agrotóxicos e em grandes expansões de terra para o plantio. Assim, para difundir suas sementes geneticamente modificadas, a Monsanto precisa de muita água, já que essas grandes lavouras estão em terrenos como o cerrado (área onde hoje temos a maior expansão do agronegócio brasileiro), “o oeste baiano, o sul do Piauí, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Tocantins, principalmente as bacias do Rio São Francisco, Araguaia e Tocantins, mas já com expansão pela região amazônica”[3]. Em todas estas regiões o agronegócio depende basicamente da irrigação.

Este modelo de agricultura disseminado mundo afora é o grande vilão do desperdício e da poluição da água em patamares impressionantes. Em relação ao desperdício, a produção agrícola irrigada consome, em nível mundial, uma média de 72% da água doce do planeta, sendo que no Brasil esse número seria de 63%. A indústria responde por outros 20% do uso mundial da água doce e o consumo humano seria responsável pela utilização de 10% da água. Por isso, o discurso corrente que culpabiliza a população (geralmente os pobres) pelo desperdício da água é falso. Em qualquer esquina do mundo hoje, vemos as empresas de abastecimento, a imprensa, o governo, empresas e até muitas ONG’s tentando convencer a população a racionalizar o uso da água, afim de evitar o desperdício. Mas essa gente não está disposta a questionar o modelo de agricultura e as políticas de apoio ao agronegócio e acabam optando pelo discurso mais fácil, na crença de que estão prestando um grande serviço para a humanidade.

Além do desperdício da água, a agricultura extensiva também é a grande vilã da poluição das águas com metais pesados derivados do uso de agrotóxicos, que neste momento estão sendo liberados à revelia dos interesses da população, agravando de forma irresponsável a situação ambiental, alimentar e de saúde pública. O Brasil é um dos maiores consumidores mundiais de agrotóxicos, representando mais de 10% do consumo mundial (dado que vem aumentando anualmente desde 1995), representando uma movimentação financeira de bilhões de dólares. O Paraná é um dos estados que mais sofre com esta realidade, já que sua agricultura está baseada na grande produção de grãos para exportação, num modelo totalmente dependente das empresas transnacionais de agroquímicos. A agricultura paranaense está baseada na concentração da terra, na destruição das florestas e das matas ciliares[4] (num processo que iniciou na década de 50 e segue até hoje) e na descarga de produtos químicos que poluem as águas e destroem o meio ambiente, gerando morte de centenas de pessoas. Em 2003 o setor de agroquímicos do Brasil aumentou seu faturamento entre 15 e 20%, movimentando mais de 2,4 bilhões de dólares. No Paraná as empresas aumentaram em mais de 10% as vendas no mesmo ano, motivadas pela expansão da monocultura da cana e da soja, principalmente: segundo reportagem publicada no Jornal Folha de Londrina, no dia 25.11.03, o faturamento com agroquímicos no Brasil chegou a U$ 2,4 bilhões de dólares no ano passado, contra U$ 2 bilhões faturados em 2002. Segundo a mesma reportagem, a multinacional Milenia Agro Ciência, com sede em Londrina, deve ter abocanhado U$ 220 milhões desse montante, só no ano passado, aumentando em cerca de 10% os seus lucros.

Matéria publicada pelo Jornal O Globo, em 31.01.18, lembra que em 2017 foram registrados 4.003 casos de intoxicação por exposição a agrotóxicos em todo o país, quase 11 por dia (dados da Fundação Oswaldo Cruz). Segundo o jornal, em uma década, a estatística praticamente dobrou: Foram 2.093 casos em 2007. Em 2017, 164 pessoas morreram após entrar em contato com o veneno e 157 ficaram incapacitadas para o trabalho, sem contar intoxicações que evoluíram para doenças crônicas como câncer e impotência sexual. O mesmo
Jornal, em 31.03.2019 lembra que “na safra 2017/ 2018 o país produziu cerca de 228 milhões de toneladas de grãos. E consumiu quase 500 mil toneladas de agrotóxicos em 2017, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama)”. Não é difícil imaginar que estamos diante de um mercado bilionário: em 2017, o mercado de agrotóxicos movimentou mais de R$ 33 bilhões no Brasil. 

O uso de defensivos agrícolas está intimamente ligado à poluição das águas e à deteriorização do solo: as práticas agrícolas inadequadas levam à perda da camada fértil do solo, que depois é corrigido com componentes químicos. Esse processo é intenso no Brasil, principalmente nas regiões de grande monocultura, como o Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, principalmente nos cultivos de soja, milho e cana de açúcar. Assim, sem a proteção das florestas e sem as matas ciliares, a terra vai morrendo aos poucos. Depois da aplicação dos agrotóxicos, a primeira chuva leva a descarga química para os rios, poluindo as águas. Dados de março de 2019 dão conta de que em 10 anos foram registrados 40 mil casos de intoxicação por agrotóxicos no Brasil, com mais de 1900 mortes, a maioria dos casos no Paraná.

Segundo dados oficiais, em 100 anos o Paraná derrubou 80% de sua cobertura vegetal, trazendo enormes prejuízos para o meio ambiente, o que vem se agravando pela poluição das águas. Da enorme riqueza de floresta de araucária, resta apenas 1%. A área total de floresta natural no Estado é aproximadamente de 17.800 km2, e 44,4% dela pertence à Bacia do Iguaçu. A retirada da cobertura vegetal de uma localidade aquece e torna pobre o solo, aumenta a poluição e o assoreamento dos rios, reduz a biodiversidade, altera a velocidade dos ventos, aumenta a temperatura do ar e modifica, irreversivelmente, o microclima local. Sem árvores, as aves partem. Sem essas predadoras naturais, as pragas aumentam. O crescimento das pragas traz o agrotóxico. O solo pobre também traz a necessidade do fertilizante. E, com eles, a química dos laboratórios chega ao campo e através dele, à nossa mesa.

Além da morte da natureza, os agrotóxicos trazem a morte das pessoas: segundo a FIOCRUZ/SINITOX, registrou-se no Paraná desde 1993 aproximadamente 6 mil casos de intoxicação de pessoas por praguicidades (agrotóxicos, inseticidas, raticidas, etc). Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), para cada caso registrado ter-se-ia outros 50 não notificados. Dados da SESA (Secretaria Estadual de Saúde) do Paraná mostram o número de vítimas do uso de agrotóxicos só tem aumentado.em 10 anos foram mais de 1 mil óbitos e 15 mil casos de intoxicação - apenas os registradora.

Além disso, o Paraná é recordista brasileiro em número de pessoas com câncer. Não é difícil imaginar que este é o preço pelo uso contínuo e indiscriminado de venenos nas nossas lavouras, poluindo a água e os alimentos que ingerimos.
As águas do Paraná apresentam grandes quantidades de resíduos de agrotóxicos: uma pesquisa da SUREHMA, de 1984 (!), verificou que cerca de 70% das amostras de água tratada apresentavam resíduos de agrotóxicos. Segundo a pesquisa, da água coletada “in natura” em 9 bacias hidrográficas do Paraná, 91,4% delas exibiram resíduos de venenos. Toda esta contaminação é resultado tanto da aplicação direta sobre a água, quanto de partículas trazidas pelas enxurradas. Uma análise feita em peixes mortos coletados no Rio Pirapó, responsável pelo abastecimento de 80% da população de Maringá (mais de 250 mil pessoas), é um exemplo da situação das nossas águas. O teste, realizado pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente, apontou altíssimos índices de metais pesados no organismo dos peixes, principalmente cromo e chumbo. “O cromo encontrado nas vísceras dos cascudos, por exemplo, é 830 vezes superior à quantidade tolerada pela legislação sanitária brasileira, que é de 0,10 miligramas por quilo. Já a quantidade de chumbo detectada foi quase 29 vezes mais alta que os parâmetros legais tolerados”. Segundo a Secretaria, “estudos científicos relacionam os riscos causados à saúde humana por metais pesados como chumbo, cromo, cobre, zinco, cádmio e mercúrio. Ao contaminar o ambiente, estes metais atingem as cadeias alimentares (água, peixes, vegetais) e chegam ao homem. No organismo humano, podem causar problemas neurológicos, hepáticos, doenças como câncer, malformações congênitas e outras anomalias reprodutivas”. É amplamente sabido que o efeito desses elementos químicos metálicos, em concentrações elevadas é muito grave para a saúde humana e dos demais seres vivos. Os metais pesados são despejados nos rios pela indústria e pela agricultura.
Em regiões como União da Vitória e São Mateus do Sul, às margens do Iguaçu, são absurdos os índices de arsênio, chumbo e mercúrio, resultado principalmente do sistema de resfriamento do xisto feito pela Petrobrás na região e também das plantações de batata e outras culturas dependentes de agrotóxicos nesses municípios.

Outro exemplo grave dos prejuízos que o uso de agrotóxicos na agricultura traz ao Paraná é o caso das lavouras de cana-de-açúcar, que usam o herbicida 2.4-D e seus similares, com o fim de inibir a fotossíntese das culturas de folhas largas e que acaba atingindo as águas (com grande matança de peixes) e culturas como a uva, o café, verduras e árvores frutíferas em geral. O herbicida 2.4-D é um dos produtos mais usados na agricultura há mais de 50 anos e deve ser aplicado dentro de estritas normas técnicas de pulverização. Derivado da tecnologia de guerra como os outros agrotóxicos, o 2.4-D traz em sua base o agente laranja, usado pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã que terminou em 1975. Cientistas avaliam que quase 8 milhões de litros do agente laranja foram jogados sobre o país, submetendo mais de 1 milhão de seus habitantes aos efeitos do desfolhante, provocando várias doenças na população, inclusive câncer. A substância química foi usada para tirar dos combatentes comunistas as suas fontes de alimento e matar a vegetação que os escondia.

Além de solucionar o problema da fiscalização do uso destes venenos nas lavouras do Paraná e de outros estados brasileiros (muitas vezes aplicado com aeronaves que pulverizam as lavouras, as águas e até cidades inteiras do interior do Estado), é preciso, ao contrário do que assistimos no atual governo, intensificar a legislação. É preciso definir as competências e atribuições concretas dos órgãos públicos responsáveis e mobilizar toda a sociedade para que se empenhe em ações educativas de conscientização vigilância e denúncia em torno da problemática abordada.

O mais grave desta situação é que não temos ainda confiança na água que sai pela torneira dos paranaenses: segundo os pesquisadores, a Sanepar não realiza análises de resíduos de agrotóxicos nas águas do Estado: dos 25 tipos venenos mais usados nas lavouras do Paraná apenas 1 seria analisado pela empresa de saneamento, o 24D. Entretanto, o 24D foi, durante anos, o 21º na lista dos agrotóxicos mais usados no Paraná: ou seja, existem outros 20 que não são analisados, entre eles o Furadan, o Roundup e inúmeros herbicidas e inseticidas. É preciso que sejam feitas no mínimo 4 análises durante o período de aplicação desses venenos nas lavouras. A Sanepar alega não ter capacidade técnica e financeira para realizar a verificação, já que existiriam 300 tipos de agrotóxicos usados no Paraná. 

Enquanto nos preocupamos com a presença de coliformes fecais e demais matérias vivas ou com a cor adulterada de nossas águas, estamos ingerindo produtos químicos perigosos à saúde humana. Enfim, estamos coando mosquito enquanto engolimos camelo.

Que a agroecologia é bom para o agricultor porque rompe com a dependência, todos nós sabemos. Que a agroecologia é bom para a natureza e os demais seres vivos, também sabemos. Agora chegou a hora de compreender que a preservação da água também depende da agroecologia. 

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[1] Segundo o Relatório das Organizações Mundiais que defendem a Água como Bem Comum, Vivendi e Suez são as duas maiores corporações de recursos hídricos do mundo e “capturam aproximadamente 40% do mercado de água existente, fornecendo serviços de recursos hídricos para mais de 110 milhões de pessoas cada. A Suez opera em 130 países e a Vivendi em mais de 100; seus faturamentos anuais ficam acima de U$ 70 bilhões. A alemã RWE segue as duas primeiras, com a aquisição da gigante britânica Thames Water e completando com a compra da American Water Works, a maior empresa privada de recursos hídricos dos Estados Unidos”.

[2] “A Tractebel está construindo a barragem de Cana Brava, no rio Tocantins, com US$ 160 milhões em financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A Tractebel se recusou a reunir com o MAB para discutir a situação de centenas de famílias atingidas, excluídas arbitrariamente de programas de compensação. Controla também as barragens de Itá e Machadinho (rio Uruguai) e tenta adquirir a concessão para construir mais barragens no Tocantins).” Roberto Malevezzi, Os Donos dos Nossos rios.

[3] Texto Base da CF 2004, p. 21.

[4] Os números mundiais indicam que cerca de 1,2 bilhões de hectares de área com vegetação, uma superfície tão grande quanto a Índia e a China juntas, foi significativamente degradada desde a segunda guerra mundial (WRI, 1992).

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