HOJE É DIA DO FILÓSOFO. SOBRE MULHERES, MACHOS, VIADOS E TATUAGENS.









José Saramago, na su’A Caverna, fez elogio à olaria – a mais antiga das indústrias – e ao oleiro, a mais remota das profissões que, segundo ele, permanece a mesma desde que as primeiras bilhas foram moldadas com terra neolítica. Esqueceu, o escritor, de mencionar o filósofo, vocacionado ao pensamento, ao longo dos milênios. Inventado por Pitágoras nos idos do século V a. C., o termo traduz o amor pela sabedoria como desafio e incômodo ao senso comum. Foi o que fez, pela primeira vez, segundo os livros de história, aquele homem de Mileto, chamado Tales, cuja afirmação “tudo é água”, deu início à atividade profissional de todos que tentam, com custos, fazer caber na mente humana a complexidade do mundo – muitas vezes com o colapso do dizível, a reinvenção das linguagens e o esgarçamento do pensável.   
Os primeiros profissionais da filosofia, contudo, parecem ter sido mesmo os sofistas. Eles vendiam seu saber em praça pública, cativando jovens e oferecendo-lhes educação. Fizeram, como é presumível, muitos inimigos. O mais célebre deles foi Platão, que os acusou de relativizarem a verdade, dando preferência ao saber enciclopédico, em nome do interesse pela retórica, instrução necessária para a prática política da democracia. Teriam escolhido o lucro em detrimento da verdade, mas claro, há muita injustiça nessas acusações. Sua contribuição para a expansão dos saberes na Hélade dos séculos V e IV a. C. é inegável. Deram destaque para a liberdade de expressão, para o bem pensar e o bem falar, virtudes teóricas até hoje imprescindíveis na vida filosófica.
Saramago tem muita razão. Hoje fazemos filosofia um pouco como antes, combatendo o senso comum e tentando provocar a reflexão a fim de vencer as banalidades reinantes. Meio contra a corrente. Desculpando-se pela insolência. Mas o fazemos, nós os funcionários do saber, como profissionais, quase sempre tendo de abandonar os romantismos daqueles tempos áureos, em que a solidão e a caturrice eram marca obrigatória. Nos novos tempos, os filósofos somos produtores de artigos, relatórios, pareceres e mil burocracias. Pressionados pela lógica do desempenho, buscamos melhorar a performance para adequar as motivações da vocação às exigências institucionais. Frágil equilíbrio. Vivemos a pressa do produto e do resultado, na corda bamba entre a solidão do pensar e a publicação do pensado. Arte de excelência. Orientação, caderneta, qualis, concursos, bancas, congressos... temos um dicionário de obrigações e lutamos para manter o fluxo da hora e a paixão do saber. 
Como aconteceu com o oleiro de Saramago, o filósofo de hoje também precisa reinventar-se. Há novas tecnologias, novos modos de ensinar e de aprender, novos acessos, contatos internacionais, grupos de pesquisa, agilidade nas produções, negócios, contratos e afazeres. Não basta mais o quarto escuro, a mão no queixo, o estilo dândi, a barba por fazer, o quase silêncio constrangedor, a posição enfadonha do pensador sem corpo ou do corpo todo macho. Noves fora, há estereótipos em desuso. Pra começo de conversa, há mulher na filosofia, machos e viados pelos corredores, tatuados, musculosos ou franzinos... o pensamento não é propriedade de ninguém. Ele também faz ginástica, canta funk, sobe morro, vai à TV. Tem facebook, instragam, blog e tinder. E daí? Viva a filosofia, que não escolhe corpo, cor de pele, orientação sexual e nenhuma dessas convenções raquíticas que alguns ainda teimam, ociosamente, em reiterar. O pensamento cabe em qualquer geografia. Seu tempo é agora. Sua arma é atômica.



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