SOBRE A ESCRITA ACADÊMICA E AS VANTAGENS DA MASTURBAÇÃO







Sempre achei que a escrita tivesse alguma coisa erótica. Escrever é como transar: há quem precise regularmente. Vem aquela volição, aquela vontade de derramar-se, aquela tensão excitada à procura da foz. Busca-se por tudo a folha branca, a tecla do computador, o lápis ereto e ali, no meio da sala, por vezes em público, no carro, no metrô, no banheiro... ejacula-se a palavra, limpa, plena de vida. A escrita é a experiência dessa pobreza do riquíssimo, que se chama desejo. E que se dá, antes de tudo, como necessidade e, depois, como alegria. Eros, há muito, é o deus da beleza e também da bondade, o que significa que o corpo e o pensamento, como tanto insistiu Nietzsche, são da mesma seara. Utensílios de prazer.
Como desejo, contudo, a escrita está mais para a masturbação do que para a relação sexual. Ela é um truque de preparação para o contato com o outro. Derrida, na sua Gramatologia, fala disso como suplemento (devo o insight ao meu amigo Prof. Ericson Falabretti, no seu texto A linguística de Rousseau: a estrutura aberta e a potência criadora da linguagem, que recomendo efusivamente[1]). Para Derrida, comentado por Ericson, suplemento é o outro nome da masturbação: porque não temos o outro disponível para um acesso direto, instauramos a sua presença afetiva. A masturbação ocorre como memória, representação ou fantasia de um/a parceiro/a sexual que não está ali, mas é imaginado; a escrita faz o mesmo com o leitor: ele não está ali, mas quando se escreve, escreve-se para esse outro que tomará conta do texto. Escreve-se porque não se pode falar diretamente. E isso, principalmente, na filosofia: como sugeriu Sloterdijk, “desde que existe como gênero literário, a filosofia recruta seus seguidores escrevendo de modo contagiante sobre amor e amizade”. Filosofia é amor à distância, carta para amigos desconhecidos. Escrever é um modo de seduzir, antecipar a apresentação ao outro para enternecê-lo, mostrando-se indiretamente nu.
Para Derrida, a masturbação é “a experiência do tocante-tocado que admite o mundo como terceiro”. Ao inventar o terceiro, suprimimos a sua ausência. Tocamos o outro em sua ausência por meio de nós mesmos. Escrever, como masturbar-se, é um ato solitário de auto-encantamento. Trata-se de uma tentativa de enganar a natureza. Como artimanha fantasiosa, no primeiro caso, a mão substitui o genital de um outro; no segundo, a palavra é usada em permuta ao diálogo direto – a coisa escrita é adiantamento (e adiamento) do prazer direto que todo diálogo promove. Em ambos os casos, o outro é sempre uma presença imaginária. E é como imaginação, que a escrita e a masturbação se apresentam como atividade de preparação e de aprendizado. Não como palavra dita, pronta, presente. É palavra preparatória, antecipatória, para um ser ausente. Escrever é uma espécie de ensaio, um toque primordial de quem quer encontrar-se diante do outro com o melhor de si. Meu amigo Clovis Ultramari (autor do livro Como não escrever uma tese, que também recomendo vivamente), disse que só escreve bem, quem lê muito. Eu diria, com Derrida, que só transa bem, quem se masturba muito. O fim, em ambos os casos, é sempre a comoção, o gozo. Afinal, como masturbar-se, escrever é provocar o próprio prazer.
Além disso, é bom advertir: como masturbar-se, escrever é sempre um modo de perverter a inocência, de inserir a criança na vida adulta. Ato perigoso e cheio de riscos. Na vida acadêmica, antes do TCC, da dissertação e da tese, todos somos pobres púberes. Núbeis na arte do sexo, somos também adolescentes na arte de expor ideias com o uso de palavras. Vivemos, enquanto escrevemos esses trabalhos, na adolescência. Só depois, trabalho entregue, transformamo-nos em pervertidos, impudicos, devassos... viramos parceiros sexuais, bons amantes, como se diz. Antes somos apenas masturbadores.
Escrever, por isso, é corromper a moralidade. Todos têm pavor de reconhecer a masturbação dos inocentes. É quase um despudor falar do assunto. Escrever, por isso, como masturbar-se, é um ato de provocação e insolência. Foi o que aprendemos com o mais famoso masturbador da história da filosofia: Diógenes, o cínico (413 a. C.). É também Sloterdijk que nos fala dele: “A insolência apresenta fundamentalmente duas posições: alto e baixo poder e contrapoder; em termos mais convencionais: senhor e escravo. O kynismos antigo inicia o processo dos ‘argumentos nus’ a partir da oposição, sustentado pelo poder que vem de baixo. O kynismos peida, defeca, urina, se masturba em praça pública, diante do olhar do mercado ateniense; ele despreza a glória, menospreza a arquitetura, não respeita nada, parodia as histórias de deuses e heróis, come carne e legumes crus, deita-se ao sol, mexe com as prostitutas e enxota Alexandre, o Grande, para que ele saia da frente do seu sol”. Quem escreve masturba-se em público, mostra-se nu e cheio de impudores e, sendo escritor de verdade, despreza a glória – quer apenas o prazer da escrita, não a fama do aplauso. Esse aí, ele sabe, vale pouco diante do puro deleite da palavra.
Por fim, é sempre bom lembrar: escrever, como masturbar-se, faz bem para corpo e alma: melhora o sono, gera sensação de bem-estar, fortalece o sistema imunológico, melhora as relações com os outros, ativa as partes sensoriais do corpo e da mente, favorece pequenas alegrias, sintoniza, torna criativo, prepara, beneficia, faz prosperar, areja. A escrita e a masturbação são, para usar as palavras do Ericson, potências criadoras. Ato de estimulação. Vai por mim: masturbe-se mais. Digo: escreva mais. Viva esse prazer.





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