DIREITOS HUMANOS É COISA DE BANDIDO?
Um
dos argumentos mais rasteiros e mais perigosos contra os direitos humanos é o de que eles servem apenas para defender bandidos. Não sei bem de onde essa narrativa
surgiu, talvez da vontade popular de vingança contra os criminosos, talvez da
insatisfação com a impunidade reinante, dos litígios pessoais mal resolvidos,
da falta de informação, da ignorância ou do desconhecimento, da propaganda
falaciosa de programas policiais que pregam punição imediata aos delinquentes,
ou... um pouco de tudo isso e muito mais. Fato é que ela faz bem ao Estado que se mantém historicamente sobre privilégios de classe e no qual a lei é coisa para poucos. Pessoas que
pensam assim, no geral são partidárias do elitismo jurídico, que garante
justiça apenas aos “iguais” e àqueles a quem, no geral, ela já está garantida. Ao
reproduzir essa narrativa ensaiada e de fácil digestão, patrocinada pela mídia
sensacionalista e irresponsável, muita gente mal se dá conta de que ao desejar punição imediata e violenta à revelia
da lei, acaba defendendo o crime generalizado e a instalação
da barbárie como regra. E na barbárie, todos perdemos.
Em
1948, quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi proclamada, os
países signatários afirmavam um conceito básico que contraria essa tendência equivocada
e orienta a prática de organizações de defesa de direitos humanos ao redor do
mundo: trata-se da ideia de universalidade
dos direitos, ou seja, o fato mais fundamental de que alguém, sendo “humano” (qualquer
coisa que isso signifique em termos teóricos, trata-se de uma realidade
inalienável) é sujeito de direitos. Isso significa que defender os direitos
humanos não é defender essa ou aquela pessoa, mas a humanidade que reside em
cada indivíduo e que o torna invulnerável do ponto de vista de sua integridade
enquanto membro da comunidade humana. Quem não reconhece essa universalidade
não só nega a condição básica de todos os seres como humanos (inclusive a sua
própria), como acaba por reconhecer que os direitos humanos não podem ser
estendidos às classes mais pobres da sociedade. Exemplo de uma posição desse
nível é o modo como parte da sociedade trata o massacre do Carandiru: bandido
bom é bandido morto, muitos pensam.
Esquece,
quem pensa assim, que ao aceitar que os direitos humanos de qualquer indivíduo
sejam violados arbitrariamente, está autorizando os demais membros da
sociedade, a começar pelas forças policiais, a tomarem as mesmas atitudes em
relação a si próprio e aos seus familiares. A lógica é simples: se eu aceito
que alguém seja preso sem julgamento, agredido, torturado e morto, eu estou aceitando
que medidas desse nível também sejam tomadas contra mim mesmo, inclusive em
casos em que eu seja inocente (se não há julgamento adequado, não há nunca punição
apropriada e, consequentemente, a justiça sempre falha). Isso não significa que
os criminosos devam ser inocentados: antes, eles devem ser punidos
adequadamente, segundo os rigores da lei. Se isso não está acontecendo,
reforme-se a lei, implemente-se mecanismos que a tornem suficientemente efetiva
e rigorosa. Só assim estaremos todos protegidos da violência que pode, hora ou
outra, bater à nossa porta nos transformando em vítimas ou –infelizmente,
também em agressores. Culpados ou inocentes, precisamos do respeito aos direitos humanos para que nossas reponsabilidades sejam esclarecidas.
Não
é demais lembrar que esse tipo de pensamento faz bem à elite e aos governantes,
que transferem para a sociedade a responsabilidade sobre a violência e se eximem de
melhorar os mecanismos de punição. Sabem eles que para brancos, ricos e
poderosos, é sempre mais fácil se defender. Aos demais, o preconceito, a discriminação
e a exclusão social sempre reserva o pior. Todos nós sabemos, ademais, que as prisões
são, em geral, palácios do terror e da violência que antes de sarar a delinquência
social, a promovem. E é aí, nesses depósitos da exclusão, da miséria e da
indignidade, que os direitos humanos são mais facilmente violados. Embora os
defensores estejam atuando em várias outras frentes
(direito à educação, à saúde, à moradia, à terra, ao emprego etc.) onde há mais
vulnerabilidade, é onde a defesa dos direitos humanos deve ocorrer de forma
mais enfática e urgente.
Não
raro, tais posições contrárias à universalidade ameaçam a integridade
desses defensores que, mundo afora (e com especial gravidade
no Brasil) são perseguidos e mortos porque sua causa é maculada até que sua
vida e sua luta percam valor. Deveríamos aprender de uma vez por todas: não é o
bandido que eles defendem, mas os direitos que são de todos e que, justamente por
serem assim (de todos) devem ser
também dos bandidos. Quando os índios eram escravizados na América espanhola
sem nenhum pudor, Bartolomeu de Las Casas cunhou um dos argumentos mais
importantes sobre esse assunto: todos os
direitos para todos, dizia o frade dominicano convertido em defensor dos
direitos indígenas. Ele sabia – e nós deveríamos aprender – que fora da
universalidade não há direitos humanos. Se não é para todos e todas, é para ninguém.
Excelente reflexão, mormente nesses obscuros tempos em que vivemos...
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