ELZA SOARES, UMA LIÇÃO DE ARTE E CIDADANIA








Boiando no breu, Elza Soares cantou em Londres hoje à noite, como parte da programação do London Jazz Festival, para uma plateia volumosa e extasiada. Já na entrada do grande teatro do Barbican, li uma frase de Hans Christian Andersen, que soou como uma espécie de prelúdio em tons schopenhaurianos: “onde as palavras falham, a música fala”. A música de Elza falou. E muito. Seu show é uma aula de dignidade, uma lição descomedida de cidadania e, sobretudo, uma experiência vertiginosa de arte pura. Tudo como deveria ser para essa “mulher do fim do mundo”, título da canção de Rômulo Fróes que dá nome ao show idealizado por Guilherme Kastrup.
Quando moralismos e muros, preconceitos e xenofobias, machismos e intolerâncias medram ao redor do mundo, Elza sentou-se como rainha negra do Brasil para falar dos direitos das mulheres. Mergulhada na luz, ela cantou contra o racismo, falou de sexo com a desenvoltura que lhe é própria, mas que não deixa de soar espantosa, levando-se em conta os seus (presumidos) oitenta e cinco. Elza serve-se de si como exemplo. Seu vocabulário é duro e frio. Estridente, sua música é ao mesmo tempo alerta e advertência, cujo auge está, sem dúvida, no refrão 180 de “Maria da Vila Matilde”, cantado repetidamente por ela e pela plateia: “você vai se arrepender de levantar a mão pra mim!”. A rudeza da verdade de palavras como essa encontra legitimidade na carne negra, pobre e violentada, a “mais barata do mercado”. A verdade de Elza é dita ali, olho no olho, sem retoques. Uma sambista sentada devido a problemas de coluna que grita “deixa eu cantar até o fim”, é parte dessa verdade irretocável que todos merecem ver e ouvir. Com os efeitos de som e luz, ao contrário do que poderia parecer, a imobilidade torna-se contagiante. Elza parece em ascensão para um mundo que é tão dela quanto nosso, os que dividimos suas esperanças.
Psicodélica em meio a luzes e acordes distorcidos, ela chega nas divisas do fim do mundo. E para tanto, do alto de sua maturidade, basta-lhe a voz. Ela não fala, contudo, de desastres e outras amarguras. Sua lição é uma só: “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”. Isso porque, talvez, o fim de que se trata, seja apenas de um determinado mundo, esse mesmo de onde ela vem e que ela condena. O lugar das fronteiras, onde a vida dá lugar à morte, a paz à violência, a esperança ao desespero.
A música de Elza Soares é tão atual e seu dicionário tão contemporâneo e palpitante, sua performance tão coerente e válida, que ela chega como ninguém onde pretende, alçada pela vitalidade e pela coragem de quem sai das raias da mediocridade, onde cresce a vulgaridade, mãe de nossas misérias. O triunfo de Elza sobre Londres nessa noite vem com lágrimas negras e sanguíneas e com palavras pesadas, sexualmente explícitas, despudoradas por dentro e por fora. Eleita pela rádio BBC em 1999 a cantora brasileira do milênio, Elza parece assumir sua identidade com a força das transcendências. Talvez por isso, no escuro do palco, quando a voz se cala e enquanto ela afunda de novo no seu mundo de escuros para recolher o conteúdo precioso que lhe dá autenticidade, só reste mesmo a declamação do poema de Murilo Mendes: Elza é essa mulher Metade pássaro. Sua mensagem é de esperança. Ao que parece, se depender dela, o mundo não vai acabar nunca. A gente, estupefato, fica torcendo pra ela voltar e nos puxar para o seu sono eterno.


Metade pássaro

A mulher do fim do mundo
Dá de comer às roseiras,
Dá de beber às estátuas,
Dá de sonhar aos poetas.
A mulher do fim do mundo
Chama a luz com assobio,
Faz a virgem virar pedra,
Cura a tempestade,
Desvia o curso dos sonhos,
Escreve cartas aos rios,
Me puxa do sono eterno
Para os seus braços que cantam.

MENDES, Murilo (1901 – 1975). Antologia Poética. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 48


PS: Sim, houve gritos de “Fora Temer” na plateia.




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