UMA VIAGEM À CASA DOS DIREITOS HUMANOS
A
Universidade de Salamanca é a mais antiga da Espanha e a quarta mais antiga da
Europa, criada por Afonso IX, em 1218, a partir da reunião de vários colégios, algo
que data de 1134. Aqui, nesses belos prédios, talhados na tradicional “piedra
blanca”, não só foram discutidas as viagens de Colombo (que esteve por aqui para discutir com especialistas a "geografia" do mundo, como nos mostra o quadro de William Powell, abaixo) como,
sobretudo, os direitos básicos dos povos indígenas da América, negados à época, porque, em termos teológicos, dizia-se que índios não tinham
alma. Um frade dominicano, Bartolomeu de Las Casas, autor da Historia de las Indias, foi o primeiro a
levar a sério essa questão e a contribuir de forma decisiva para o
reconhecimento dos direitos humanos dos indígenas, denunciando sua escravidão. Estudante
de Salamanca, ele viajou na segunda expedição de Cristóvão Colombo às “Índias”
em abril de 1502. Foi aí, a 21 de dezembro de 1511, quarto domingo do advento, que Bartolomeu, então um padre encomiendero,
ouviu o sermão de Frei Antônio de Montesinos. Fora tocado por uma pergunta que
lhe embrulhou o estômago: “Acaso estos no son hombres? No tienen ánimas
racionales? No sois obligados a amarlos como a vosotros mismos?”
A
primeira comunidade dominicana da América estava à frente da sua época.
Montesinos vinha de Salamanca, onde fez seus votos religiosos, antes de formar,
com Pedro de Córdoba e outros dois frades, a primeira comunidade religiosa do
Novo Mundo. Os desafios teóricos nascidos da experiência desses frades junto aos povos autóctones não demoraram a repercutir na universidade de Salamanca. Naquele domingo do advento, Bartolomeu se converteu aos direitos
humano ao ouvir as interrogações de Montesinos, que era a voz que clamava no
deserto daquela ilha, denunciando o “pecado mortal” dos colonizadores, conforme
ele mesmo escreveu. Bartolomeu não pôde fechar os olhos à obviedade da situação: os
indígenas deviam ser “amados” e não escravizados.
Em Salamanca, Francisco de Vitória recolhia o tema como desafio filosófico e teológico. Sua preocupação central era a dignidade humana, os aspectos morais da economia e, sobretudo, a teoria das
guerras, algo que o fez fundador do direito internacional
moderno – bem antes mesmo de Grotius. Seu livro principal sobre esse
assunto, Os Índios e o Direito da Guerra,
está publicado no Brasil pela editora Unijuí, na coleção “Clássicos do Direito
Internacional” (2006). Francisco de Vitória viveu e ensinou entre essas paredes
que agora contemplo. Suas ideias e seu método de ensino cativou discípulos
que estariam entre os maiores intelectuais da Espanha de seu tempo, entre os
quais está o filósofo jusnaturalista Francisco Suárez, o teólogo Domingo de
Soto e o jesuíta Roberto Belarmino, este último, responsável não só pela
condenação de Giordano Bruno, como pela abjuração de Galileu. Sim, nem tudo são
flores por esses jardins...
Acima
falei da inovação metodológica de Francisco de Vitória. Ele chegou a Salamanca
como um dos principais pensadores de seu tempo e aqui implantou duas inovações:
adotou o texto de Tomás de Aquino como o texto bibliografia básica em suas
aulas (como parte do que será chamado, no âmbito filosófico, de “segunda escolástica”,
um importante ingrediente teórico do nascente debate sobre os direitos humanos)
e o ditado das suas aulas (o que possibilitou que tivéssemos acesso a muitos de
seus textos, anotados pelos alunos), seguida por uma explicação e debate das
ideias centrais – algo realmente inovador para a época. Isso durou vinte anos,
de 1526 a 1546. Sobre Vitória, escreveu um discípulo: “poderiam, alguns, saber
mais do que ele, mas nem dez juntos ensinavam como ele”.
A principal inovação de Vitória, contudo, foi no campo das ideias. Em Salamanca, ele enfrentou
alguns dos maiores desafios intelectuais de seu tempo. Quatrocentos anos da fundação
da ONU e da proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o
filósofo falava, nessas salas e corredores, de uma sociedade de nações, da proclamação
de leis e da tutela dos direitos das “gentes”, como se dizia. Sua visão
inovadora projetou a ideia de uma articulação internacional capaz de garantir,
por força de lei, a justiça e o direito. Segundo ele, nenhuma nação deveria “dar-se
por desobrigada” diante desse novo direito de tipo subjetivo, e isso incluía o
respeito aos direitos dos povos no novo mundo: “os índios têm seus direitos a
permanecer em sua religião e a que ninguém os coaja fisicamente a abraçar uma
fé distinta” – algo que, para a época, era realmente um grande avanço. Também estavam
em suas lições ideias como direito à cidadania, à sociabilidade e à comunicação,
ao livre acesso “a todas as regiões da terra” sem prejuízo de seus habitantes
nativos, direito ao comércio e ao domicílio no país onde nasceram.
Vim
a Salamanca com outros quatro brasileiros e estou em um congresso internacional que conta com representantes de 52 diferentes
países. Uma verdadeira Babel de teóricos e ativistas dos direitos humanos. O evento
tem como objetivo retomar e atualizar essa tradição de reflexão e de luta por ocasião
dos oitocentos anos da Ordem Dominicana. Agora que um novo afã conservador contorce os discursos e põe em
risco tantos avanços sobre esse tema em nosso país e em outros lugares do mundo,
creio que Salamanca pode, de novo, ser inspiradora. O ar, pelo menos, está muito respirável e o sol ilumina o céu como nunca. Veja por você mesmo.
Que lindo Jelson. Que essa Congresso realmente seja o sol a brilhar para a nossa Família Dominicana.
ResponderExcluirEsse texto vem a corroborar com o que sempre falo aos meus alunos, que em todas as épocas sempre teve quem protestasse contra atitudes desumanas e governos excludentes. Muitas pessoas perderam a vida lutando em "batalhas" quase solitárias por um mundo melhor aos menos favorecidos, por isso, devemos sempre ter esses como fonte de inspiração, pois estamos longe do paraíso nesses quesitos, mas temos muito mais apoio e ferramentas de luta que esses corajosos tiveram em outrora.Parabéns pelo texto Profº Jelson. Brilhante como sempre. Aproveite ao máximo essa conferência e que amplie ainda mais seus conhecimentos.
ResponderExcluirObrigado Vilma. Beijos.
ResponderExcluirCaro Daniel, fico muito feliz que o texto tenha ajudado de alguma forma o teu trabalho em sala de aula. Parabéns por ajudar os estudantes nessa difícil travessia! Grande abraço pra você e boa sorte, sempre.
ResponderExcluirÓtimo post. Parabéns. Lindas fotos.
ResponderExcluirGosto muito de viajar, a minha próxima viagem agora é para Bonito MS. Desta vez vou realizar um passeio https://www.agenciasucuri.com.br/Passeios-Bonito