A FILOSOFIA, ESSA INDESEJADA








A filosofia, como disciplina escolar, tem sido uma indesejada. Passamos incontáveis horas estudando português e matemática quase sempre sem nos perguntarmos sobre a utilidade dessas coisas. Elas parecem óbvias, afinal, dizem alguns, para humanizar o ser humano, é preciso que ele saiba ler e contar. Uma visão, cá entre nós, bastante limitada e antiga, amplamente difundida desde o Iluminismo, como estratégia para nos tirar das trevas. Com a filosofia não é assim. Talvez porque essa seja a sua essência, ela é colocada sempre de novo à prova. Nenhuma outra disciplina precisa dizer tanto e de tantas formas a que veio como a filosofia. Nenhum outro professor precisa entrar em sala de aula aparelhado de tantas desculpas e justificativas (“gente, absolvam-me, isso é bom pra vocês, acreditem e... me suportem!”). E por isso, como sabem os meus colegas, nenhum outro professor é tão seriamente avaliado, criticado, exposto. O professor de filosofia está sempre nu, como aquele santo entregue às flechas. Sua santidade, contudo, não está na evidência de sua bondade, mas na defesa de uma causa aparentemente perdida. E sua condição está longe de ser a de um mártir ou de uma vítima. Antes, ele sempre retorna como criminoso.
A filosofia, como disciplina escolar, é sempre problemática. E isso não é de todo ruim. Heidegger anunciou esse fato como uma vantagem ao afirmar que, sendo “problemática”, a filosofia sempre se coloca como problema para si mesmo. Tem sido assim desde Tales. A pergunta o que é isto, a filosofia é parte já, intrínseca, do ato de filosofar. Ocorre que, para ser formulada nesses termos, o objeto da pergunta, ou seja, a própria filosofia, precisa ser levado a sério. Sem isso, o problema da filosofia é ocioso e suas interrogações viram apenas chacota, tumultuada gozação. E talvez porque ninguém saiba mesmo o que é isto, a filosofia posto que no geral se permanece sempre fora do seu círculo, talvez seja por isso, efetivamente, que ninguém valorize a filosofia, salvo alguns filósofos. O valor da filosofia, afirmou Bertrand Russell (quem, aliás, também era matemático, como Descartes, o pai da filosofia moderna – o que prova que não há inimizades entre as áreas do saber em questão) está no seu potencial de tornar o espírito humano mais sereno e, sobretudo, mais livre, justamente porque esclarece e ajuda a encontrar justificativas para o que são apenas convicções, preconceitos ou crendices – nada mais indesejável em tempos como os nossos em que convicções se sobrepõem aos fatos.
A filosofia, como disciplina escolar, é indesejada, sobretudo, porque ela não tem nunca um produto (salvo quando a gente se esforça para colar no corredor da escola/universidade algum cartaz ou banner que tente tornar “palpável” o pensamento – mas isso é só estratégia de salvação). Filosofia não tem produto porque seu resultado não é outra coisa senão mais pergunta. A filosofia é incapaz de nos dar respostas verdadeiras e definitivas. E isso não agrada a todos. Não é raro que as pessoas revelem certo mal-estar com a interminável disputa de argumentos de filósofos em torno de um mesmo tema. Para um olhar mais, digamos, prático, a filosofia não passaria de rinha eviterna típica de um hospício, posto que aí ninguém parece se entender. Quem quer verdade última, fácil, resumida, não mora na filosofia.
A filosofia, como disciplina escolar, é indesejada tanto quanto aquela criança que está, como dizia a minha mãe, na “idade dos porquês”. Chata essa gente que fica sempre interrogando, quando é tempo de afirmar. Insuportável essa turma do “para que?”, do “com que motivo?”, “com que razão?”. Quando visitei uma escola, no passado, a diretora me confessou que o professor de filosofia estava dando muito trabalho – criando polêmica, sabe? Eu não tive outra saída a não ser lembrá-la dessa vocação inconformista e questionadora dos agentes filosóficos. Foi Russell que nos presenteou com essa verdade: se a filosofia não nos dá certeza sobre o que as coisas são, é porque ela nos oferece múltiplas escolhas diante do que as coisas podem ou poderiam ser. Filosofia não gosta de dogmatismo. Em suas veias corre o sangue perigoso da admiração, do susto e da contradição. Seu ensino, é a transfusão desse sangue. Sua metodologia, é o contágio da incerteza e do incômodo como origens do pensamento. O que se espera disso? Não resposta, mas outras perguntas. O filósofo é o ser que caminha entre perguntas como aquelas pedras que a gente espalha para passar sobre um terreno alagado. E como alguém que mal se dá conta, do nada e ele já está caído na poça d’água, embaralhado que foi pelo limo das rochas. O filósofo é um ser tão estranho que costuma cair do alto de suas próprias perguntas. Por isso, quase sempre é encontrado roto e sujo de lama, como os demais mortais.
A filosofia, como disciplina escolar, foi indesejável no Brasil durante a ditadura militar. Em época em que obedecer é a regra, pensar é ato ilícito. Ainda mais quando somos incentivados pela preguiça, tão radicalmente denunciada por Kant: por indolência a gente prefere que alguém pense e decida por nós. Esse é o desejo próprio dos opressores. É o modo que eles encontraram para instalarem-se, parasitas, nas nossas cabeças. Onde não há pensamento, há sempre lugar para eles. Se o pensamento não enche a barriga, é bem verdade que ele torna as mentes impróprias para as tênias da ordem vigente. E onde as tênias moram, o corpo definha. O pensamento, como oficina que nunca descansa, torna a mente humana inadequada para a reprodução dos vermes da convicção e do dogmatismo. Mas não estou falando de um pensamento qualquer. Foi com Heidegger, também, que a gente aprendeu que uma coisa é poder pensar (ou seja, ser animal racional), outra é escolher o pensamento (aprender a usar a racionalidade).
Agora que o ministro do Frota e o presidento ilegítimo encenaram na alcova, confundidos, a reforma do ensino médio, é bom pensar de novo sobre o valor da filosofia. Na prática a mudança vai reiterar a sua desvalorização. Depois que ela e sua irmã gêmea, a sociologia, foram alvo de inúmeros ataques da elite paneleira da nação, o que nos espera? Talvez novas fogueiras, inquisições, fahrenheits 451.

Filosofia, meu amor, eu te desejo tanto, na escola e na vida - na escola da vida!



Comentários

  1. Grata pela inspiração em tempos tão sombrios!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. "Professor de Filosofia, gosto da palavra, que vem em forma de vivência, depois reflexão e, por fim, escrita (ou seria tudo junto, ao mesmo tempo?)". Isto é perceptível em suas palavras. Demonstra o orgulho de assumir e ser encontrado por aquilo que sempre esteve ali, o ser Professor. Parabéns!

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