NÃO, A CULPA NÃO É DAS MULHERES.







“Foi pela mulher que começou o pecado, 
por sua culpa todos morremos” (Eclo 25,24)

Não é de hoje. Quando os gregos quiseram explicar a origem dos males do mundo, não hesitaram em responsabilizar Pandora, a primeira mulher criada por Zeus, a quem foi dado um jarro que continha coisas lindas e maravilhosas, mas nunca poderia ser aberto. Como acontece em quase todos os mitos, as mulheres são sempre sedutoras e curiosas. Pandora foi criada como castigo aos homens, depois que Prometeu roubou o fogo dos deuses. A simbologia revela, sem meias palavras, que estão contrapostos aqui a racionalidade prometeico-masculina e a sedução pandórico-feminina: um jarro de coisas maravilhosas, mas intocáveis, é o pior dos castigos ao homem que objetifica o que a mulher carrega entre as pernas. A sedução, por isso, aparece como castigo e desvio à razão iluminada. À mulher, que nunca tem razão, resta seduzir. Mas Pandora, como várias outras mulheres mitológicas, carrega essa que seria uma característica essencialmente feminina desde então: ela é curiosa. Capacidade inata de perscrutação, inquiribilidade e exploração. Não, não é a sabedoria masculina, completa, retilínea, aprofundada. A curiosidade é conhecimento recortado, mexerico, ti-ti-ti, disse-me-disse de salão de manicure. Pandora sofre de sua própria natureza feminina. E porque é assim, por ser mulher, Pandora abre a caixa, como acontece sempre e saem de dentro de sua boceta o que já de pior no mundo. Tudo culpa de Pandora. Fecha as pernas menina!
Quando os judeus tiveram de contar o seu Gênesis, no último livro do antigo testamento a ser escrito, lembraram dos mitos ouvidos de outros povos durante o tempo de escravidão no Egito. Tudo estava bem, até que Deus criou Eva. Mal chegou, essa menina maldosa já subiu no pau e comeu o fruto da árvore proibida. Qual árvore? A árvore do conhecimento, é claro – e não qualquer um, mas o conhecimento do bem e do mal. A curiosidade de Eva foi além dos limites: quis decidir agora, por si mesma, o que é bem e o que é mal, uma coisa que todo livro de ética deixa bem claro que é o maior pecado do mundo judaico-cristão, ou seja, ser como Deus. Ainda mais sendo mulher! Eva, que também era linda e sedutora, com aquela folhinha verde abanando sobre o ventre, ofereceu a fruta a Adão. Como resistir àquele olhar fascinante? Resultado: foram expulsos do paraíso e condenados a vagar em dor e tédio. Tudo culpa de Eva, essa desajuizada.
O livro do Êxodo fala dessa deriva pelo mundo e do sonho de paz e liberdade do povo judaico. Nele as mulheres exercem papel central: uma mulher levita salva Moisés do rio, a filha do Faraó lhe dá proteção, Zípara lhe dá amor e abrigo em Midiã, Míriam, sua irmã, ajuda-lhe a descobrir a sua própria identidade. Moisés, o herói do povo judaico, não seria nada sem as mulheres. O autor do Êxodo, contudo, ao que parece, esforça-se por dirimir essa importância. Uma amiga me disse que há muitos rastros de machismo nesse texto e me convenceu do assunto quanto explicou a história de Míriam, no capítulo 12. É lá que está escrita uma frase contundente: “Mas afinal, foi só através de Moisés que o Senhor falou? Não foi também por nosso meio?”. Lida de uma forma, digamos, mais feminista: “Mas afinal, foi só através dos homens que o Senhor falou? Não foi também por meio de nós, mulheres?”. Míriam teria reunido a mulherada e decidido subir o monte para falar com Deus, desafiando o poder de Moisés. Deus, ao saber disso, mandou que ela desmobilizasse a mulherada e jogou-lhe uma lepra como castigo. Quem queria participar da elaboração das leis (símbolo máximo da cidadania) acaba sendo excluída: Míriam foi posta fora do acampamento por sete dias, no meio do deserto. O povo, contudo, ensinou a minha amiga, esperou por ela, deixando claro aos bons leitores, que Míriam tinha um papel central na travessia do deserto até a terra prometida. Apesar de Moisés. Apesar de Deus.  
Oxum, na mitologia afro-americana, é a orixá das águas doces. Há diferentes versões para sua história. O certo é que sua imagem está associada às emoções fortes, às lágrimas e ao choro sentimental. Seus filhos são sempre chorões. Uma versão do mito diz que ela aprendeu a fazer curas com plantas medicinais, mas como isso era tarefa dos homens, que detinham o conhecimento como propriedade masculina, Oxum foi expulsa da aldeia. Do alto da montanha teria chorado a cântaros, dando origem às cachoeiras e às águas doces dos rios, onde até hoje é cultuada com velas e oferendas. Outra versão diz que ela brigou pela exclusividade do amor de Xangô e criou desavenças na terra. Tudo por causa da sua beleza. Oxum é, por isso, ou a mulher a quem é proibido conhecer ou aquela que cria conflitos por causa do amor. Bem barraqueira essa aí... 
Os karajá brasileiros viviam no fundo do rio, onde formavam a comunidade Berahatxi Mahadu, os que vivem no fundo das águas. Estavam satisfeitos e gordos até que alguém resolveu dar uma espiadinha acima das águas e descobriu uma passagem, na Ilha do Bananal, no Tocantins, para a floresta. Há quem diga que foi uma jovem mulher, certamente curiosa e sedutora. Fez tanto mi-mi-mi que convenceu os karajá a mudar de mundo. Vieram a fome, as doenças e a morte. Os karajá emagreceram e quiseram voltar, mas a passagem estava fechada.
Todos esses relatos partilham o mesmo machismo que se alastra na cultura. Sendo mitos, traduzem o que está na base de nossos modos de pensamento, nas escolhas que fazemos no cotidiano, no sacrifício diário das mulheres que continuam sendo apedrejadas porque, afinal, tudo é culpa delas, tudo continua sendo culpa delas. O desabafo da atleta Joanna Maranhão essa semana, nos jogos que deveriam ser olímpicos porque deveriam ser despidos de machismo, homofobia, xenofobia e outros preconceitos, é só um sinal de que continuamos seguindo à risca a receita da culpa pelos males do mundo, que é unicamente, de uma metade da humanidade. Continuamos pensando de forma simplista, maniqueísta, ingênua, maldosa. Na atual conjuntura política nacional, esse tem sido o pior dos males: a mulher é totalmente culpada. Aos homens (brancos, ricos, velhos e corruptos) cabe continuar suas sessões de apedrejamento e açoites, varando as madrugadas.
           Quando é que a nossa história será contada sem essas violentas idiotices? Talvez devêssemos parar de ensinar isso às nossas próprias crianças.

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