EM ÉPOCA DE CRISE, TODOS QUEREMOS UM BODE EXPIATÓRIO






Toda crise é uma espécie de ferida. O abscesso cresce e o inchaço precisa ser liberado, para que a dor se amenize. Quando a crise é social, o povo busca uma válvula de escape para evitar a turbulência. A forma mais comum de alívio é a escolha de um bode expiatório, capaz de personalizar a insatisfação popular. Não raro, essa escolha é orientada por ideais higienistas de luta contra a “podridão”, a “imundície que está aí”, o “chiqueiro que virou a república”. Vassouras à mão, o povo quer purificação e limpeza. Para isso, precisa encontrar alguém que encarne todas as culpas e represente todos os desgostos, contra quem ele possa dirigir suas frustrações. No geral, o povo escolhe suas vítimas induzido por discursos ideológicos que começam sutis e fragmentados, mas que se consolidam gradualmente, amparados pelas interpretações forjadas pelos aparatos midiáticos e os interesses políticos que estavam, até então, nas sombras. O povo quer queimar o seu “Judas”. Hipnotizado e sedento, reorganiza seu passado, reforma suas memórias e se beneficia dessa espécie de terapia de massas, que geralmente inclui muitas simbologias, bandeiras, cores, gritos de ordem e líderes capazes de coordenar os rituais da expurgação. 
Hanna Arendt, no texto sobre o antissemitismo publicado hoje  (29.05.16) na Folha de São Paulo, descreve esse fenômeno, que ela considera insatisfatório para explicar a perseguição aos judeus, com as seguintes palavras: “a teoria da válvula de escape está no mesmo nível da velha anedota que faz a pergunta sobre quem deve ser culpado por tudo, para a qual a resposta é ‘os judeus e os ciclistas’, seguida pela pergunta indignada, ‘por que os ciclistas?’- para a qual a resposta é ‘por que os judeus?’”. Os judeus foram considerados por muitos alemães, uma verdadeira “praga sobre a terra”. Há quem pense isso dos gays, das mulheres, dos negros, dos artistas, dos filósofos, dos petistas, dos comunistas, dos... Hoje uns, amanhã outros, mas sempre alguém deve ser acusado de todos os crimes e de todas as calamidades.
A indicação do culpado e a obrigação evidente de sua condenação é, por isso, acompanhada de uma vontade de simplificação. Quanto mais rudimentar e acessível a pretensa explicação da crise, mais fácil a identificação do culpado. E quanto mais isso acontece, menos chance de superar a crise. Entramos em um círculo vicioso: quanto mais a crise se agrava, mais queremos redenção e vingança e, por isso, mais agredimos aquele que foi escolhido como “boi de piranha” (a versão sertaneja para o bode, que advém da tradição judaica). Manifestações espontâneas do ódio se espalham facilmente, por meio de cartazes humilhantes, adesivos nos carros, agressões e xingamentos públicos e uma soma infinita de violências cotidianas autorizadas pela economia da culpa. O discurso se polariza e se torna maniqueísta. Os argumentos se enfraquecem. A má-interpretação da crise gera não só a necessidade, mas sobretudo o direito à vingança. Como em uma execução pública medieval, “a frieza dos juízes” e a “penosa preparação” do ato, deixa claro que ali, alguém é utilizado como “um meio para amedrontar outros”. As palavras são de Nietzsche, em Humano, demasiado humano: “a culpa não é punida, mesmo que houvesse uma”. Por isso, nesses casos, ninguém precisa de crime e os argumentos para a punição parecem tão fracos e contestáveis. É porque, nesses casos, eles realmente não importam. A vítima é só um bode expiatório, um elemento do episódio de sangue que tem como único objetivo a catarse popular. O bode expiatório tem a grande utilidade de atenuar a culpa de todos. Ele ajuda a esconder todas as outras mazelas, os crimes impunes, as corrupções cotidianas, as atrocidades e delinquências que se acumulam nos gabinetes daqueles que se arvoram os justos, os defensores puros e objetivos do ideal da justiça. Todos estes juízes, não raro, saem à praça pública como patriotas, vestindo suas togas, sob a gratidão do povo que assiste o sacrifício da vítima e fecha os olhos para as calúnias e equívocos que moldam o ato da expiação. 

Como sempre acontece nesses casos, quanto mais o animal se debate, menos ele consegue provar sua (presumida) inocência e mais forte parecem as acusações de seu delito. O bode, sozinho, deve carregar a sua (também presumida) culpa. Pilatos, por isso, mandou crucificar Jesus sob os aplausos do povo. E Hitler teve grande aprovação popular enquanto gritava impropérios contra os judeus, acusados de todos os delitos possíveis, incluindo a crise econômica e política da Alemanha de seu tempo. Os exemplos são inúmeros ao longo da história, o cinema é farto em retratá-los e a literatura especializada tem estudos contundentes a esse respeito. A gente, contudo, não aprendeu a lição da história. Historia magistra vitae? Não. Cícero está errado. A história não é professora da vida. Do contrário teríamos aprendido que todas as catarses são sangrentas. E que, ao oposto do que parece, depois do sinistro espetáculo, nem sempre vem a bonança. Geralmente o que se segue é a consciência da culpa, a certeza do erro e o vexame de ter acendido a fogueira que há de nos queimar a todos. 





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