O [ODIOSO] ÓDIO À DEMOCRACIA
A democracia é, e será sempre, uma tarefa inconclusa. Sua característica
inerente é o debate e a contradição, inclusive aquela que se exibe despudorada em
tom antidemocrático. Democracia exige paciência, tolerância e responsabilidade porque seu estado normal é a pendência e a querela de interesses, próprios das
disputas políticas nem sempre consensuais. A democracia é o terreno da
instabilidade que muitos teóricos chamam de agonista (do grego agon: disputa). Ela
é uma guerra boa, cujo nome, Hesíodo, no seu O trabalho e os dias, reconheceu
como “boa Éris”: ela se efetiva como regime de discordância, em torno do qual erguem-se
os cintos contentores que protegem a sociedade contra qualquer outra opção que
não seja, afinal, ela mesma, a democracia. É simples: só dentro da democracia é
possível colocar a própria democracia em xeque para ver, finalmente, que contra
ela, não há outra alternativa.
O terreno é instável e a areia movediça. Talvez por isso,
muitos se incomodem. O estado de incompletude gera desconforto. A gente tende a
achar que a incerteza é o defeito da democracia, sua falha. Depois disso, fica fácil
odiá-la. E se odeia de fato, com faixas na mão e tudo. Odeia-se a sua iminente
derrocada, o fato de ela ser sempre uma promessa e de ter como sua, a contradição
e a antinomia. O que se odeia na democracia é o constante confronto de ideias,
a provisoriedade dos acordos, a versatilidade dos posicionamentos. Mas sobretudo,
o que odeia na democracia é que ela dê espaço para as reivindicações e, com
isso, ameace antigos privilégios.
Norberto Bobbio destacou a importância da reivindicação para
a garantia e a promoção dos direitos. O mesmo vale para a democracia: autofágica,
ela crava as unhas na carne e se alimenta do próprio sangue. Quanto mais contraditada
ela for, mais forte ela será. Mas é isso,
paradoxalmente, que nós odiamos nela. A gente gosta de pisar terreno firme e de
parar entre muros. Nós, os modernos, temos gosto quase erótico pela privacidade
e a pseudo-segurança dos paredões divisórios de nossos condomínios e
residências. Muros apartam a humanidade em duas: os que reivindicam e os que
temem a perda dos privilégios (a disputa entre os perigosos e os proprietários
remonta a tempos imemoriais...). Ao contrário, cada um no seu lugar significa serenidade e ausência de conflitos. É a receita do esquartejamento
social que sustenta a paz sem voz que alguns chamam de volta. Kant, no famoso texto Resposta
à pergunta “o que é esclarecimento”, culpou as gentes da preguiça e da covardia
de sua própria servidão voluntária. É mais seguro ficar entre os muros. Finalmente, lembra o filósofo, “é cômodo
ser menor”, mais fácil obedecer e deixar aos nossos “tutores” as responsabilidades
que são nossas. É mais simples ser aquele “embrutecido gado doméstico”
preservado em suas tranquilas pastagens - gente que “não ousa dar um passo fora
do caminho para aprender a andar” com suas próprias pernas e que, por isso, intumesce os lábios com saudades da ditadura.
Vivemos no Brasil hoje um forte debate sobre a nossa jovem democracia. Ponderemos: está difícil conversar! Nosso
país não cresceu, infelizmente, em exercício cidadão. Fizemos poucos esforços
nos últimos anos para efetivar a democracia como participação efetiva na vida
das nossas comunidades locais e a reduzimos aos processos eleitoreiros. Não é
por acaso que é de uma eleição que tratemos, agora, quando muitos estão revoltados contra
o atual estado das coisas. Esses questionamentos, no geral, estão
reduzidos à forma. Poucos se revoltam ou se manifestam contra os problemas de
conteúdo de nossa democracia, que incluem a falta de políticas públicas capazes
de minimizar as nossas enormes dívidas sociais. A gente quer mudar o governo. Não
quer que o governo mude. Porque a gente só sabe de democracia como voto em dia
de eleição. Essa democracia, sem conteúdo, é pobre e sendo pobre, não tem
espaço de manobra e pode facilmente entrar em derrocada. Também não é à toa
que, nas ruas de nossas cidades, entre uma faixa e outra, teimam em aparecer
apelos à ditadura militar. Afinal, o que se odeia na democracia é que ela seja
desordenada, um pouco desordeira até, um tanto caótica e incerta e que ela dê margem para
tantas encenações. Não interessa o fato de que ela, assim reduzida à ação eleitoral (hoje maculada
pelo escárnio da corrupção nas campanhas políticas bilionárias), traduza
projetos que não são nossos e plataformas políticas de grupos minoritários - da
bíblia, do boi ou da bala – que crescem na mesma medida das nossas apatias. Isso
não importa. Importa a ordem. Importam os muros.
O filósofo francês, Jacques Rancière lançou em 2005 o seu
ensaio O ódio à democracia, no qual fez uma avaliação contundente desse chamado “regime
de governo”. Rancière mostrou que as nossas democracias são geralmente
falsas porque reduzidas – quando muito - a “Estados de direito oligárquicos” que
têm como função central evitar os distúrbios para que os que foram eleitos
governem em paz. Trata-se de um governo, no fundo, das minorias que odeiam a
democracia de fato porque ela daria voz ao povo. Na orelha que escreveu para a versão
brasileira do livro de Rancière, o filósofo Renato Janine Ribeiro deixou isso
bem claro: a democracia não pode ser reduzida às instituições, à
governabilidade ou aos partidos, porque ela “é algo que vem de baixo,
desdenhado desde os gregos como o empenho insolente do povo em invadir o espaço
que era de seus melhores, de seus superiores".
Com Rancière aprendemos que o que se odeia na democracia é o
povo ocupando o espaço que não é seu. O que se odeia na democracia, no fundo, é
o povo. As exigências do povo, sua luta por comida, terra, casa, educação de
qualidade, igualdade de oportunidades, respeito às religiões e às diferentes orientações
sexuais... O que se odeia na democracia é o bolsa família, a política de cotas,
é a reforma agrária, é o programa de moradia, é o pobre no aeroporto, é a “Jéssica”
na universidade. Na ditadura do mérito, o que se odeia na democracia é a sua
memória histórica, que facilita entradas além-muro: entre outras vergonhas, ela lembra que fomos o último país
do mundo a fazer a abolição da escravatura e reconhece a dívida social com os
negros; ela lembra que temos a segunda pior concentração fundiária do mundo e
promove políticas de acesso à terra; ela lembra que somos um dos países mais
desiguais do mundo e provoca ações contra essa triste realidade e seus macabros
algoritmos. O que se odeia na democracia é que ela incentive os “perigosos” e
os “indesejados” a ocuparem (há quem use o verbo “invadir” nesses casos!) os
espaços reservados nos "guetos voluntários" onde estão, felizes, os que têm
onde estar. O que se odeia na democracia
é que ela não esteja sempre a nosso favor. O que se odeia na democracia, é que
ela nos faz perder privilégios. Travestida de ódio, a democracia se reduz à
vontade de reprimir esses “insultos”. Só essa é a democracia boa. A do silêncio
– ainda que seja aquele dos canhões, das cadeias, dos desaparecimentos, das
torturas e seus porões letais que nós já provamos há pouco – e foi muito ruim. A democracia também lembra bem disso!
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