O FILÓSOFO NÃO SABE DOBRAR UM LENÇOL DE ELÁSTICO: SOBRE OS CORTES DE RECURSOS PARA A PESQUISA EM FILOSOFIA




Parei de escrever meu artigo sobre a fenomenologia de Hans Jonas para recolher a roupa que eu mesmo coloquei e retirei da máquina de lavar na manhã de hoje. Demorei a achar os pares das meias e a acertar as orelhas das toalhas, mas confesso: o que realmente me deu trabalho foi dobrar aquele lençol de elástico. A tarefa é tão árdua - acreditem - que deu vontade de amaldiçoar quem inventou essa coisa tão favorável na cama mas desprovido de qualquer compreensibilidade doméstica na hora de ser guardado no armário.

Fiquei pensando nessas tarefas complexas e ao mesmo tempo óbvias que o nosso dia-a-dia impõe e na dificuldade que temos, os pretensos pensadores e/ou intelectuais, para realizá-las. Lembrei do Tales, coitado, cuja queda naquela rua qualquer da Ásia Menor até hoje é motivo de riso. A jocosidade, contudo, permanece como um preconceito e se revela, não raramente, como motivo político que resulta na falta de investimentos dos governos na própria filosofia.

Não gosto de cultuar a nossa incompetência e inutilidade, confesso. Prefiro acentuar nossas grandezas e importâncias, mesmo aquelas que residem na “desutilidade” e “ignorãnça” tratadas por Manoel de Barros, que se reconhecia como “referente pra ferrugem mais do que pra fulgor” e afirmava, despudorado, que “o cu de uma formiga é mais importante do que uma usina nuclear”. É dessa desimportância-tão-importante que trata a filosofia e é por isso que sua nobreza reside nas coisas básicas da existência, mesmo aquelas que permanecem sem nomes. Pois é isso: filosofar é dar nomes para as coisas que não foram ainda batizadas e, nisso, somos vizinhos dos poetas – metáforas e conceitos são os ingredientes de nossa majestade. O cu de uma formiga, afinal, não é só mais importante, como mais perigoso nas mãos de um filósofo. Você não pode nem imaginar o que podemos fazer com um cu desses!

Justamente hoje, enquanto tentava dobrar aquele lençol sem pontas, equilibrando o tecido desastradamente, sem sucesso, entre os meus dedos, convocando queixo, ombro, dentes e pernas para a hercúlea tarefa, chegava a notícia de mais um corte de bolsas para a área de humanas por parte do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), do governo federal. Na prática isso significa que meus alunos de iniciação científica vão ficar desamparados porque, como eu, embrenharam-se nessa tarefa de pensar sem saber dobrar lençol de elástico. Levando isso a sério cheguei a chorar por eles: pobres meninos e meninas, na hora mais decisiva de suas vidas, quando tentam moldar seu futuro por meio da filosofia, precisamente nesse momento em que definem sua vocação no mundo, o sentido de suas vidas, o que vão fazer com o tempo que lhes coube viver... bem agora, são penalizados e repreendidos, acusados e desmotivados.

Tais cortes, planejados como política pública pelo atual governo, parecem, à primeira vista, traduzir aquela “desimportância” que nos é tradicionalmente atribuída. Mas pensando bem, a lógica nos ajuda a pensar mais longe e reconhecer que, se fosse desimportante, o pensamento não seria perseguido. Coisas desimportantes permanecem esquecidas num canto do mundo. Desde quando a ditadura militar brasileira proibiu as aulas de filosofia nos anos 1970, tratava-se mais do perigo e da provocação do que da inutilidade. Em outras palavras: não é porque não sabemos dobrar lençóis de elástico que somos malvistos, mas porque temos a petulância de avaliar as utilidades dessas coisas e dar-lhes nomes e fundamentos, ajuizar suas manobras e desvelar os interesses de quem as qualificou. Somos punidos porque somos perigosos e não porque somos inúteis. Se tivéssemos mesmo aquele “cacoete pra vadio” cantado por Manoel de Barros, talvez a gente estivesse em “bons lençóis” agora.

Por um instante pensei em deitar o lençol de lado, arremessa-lo à gaveta com ganas de amassamentos. Contive meu ódio para abrir o Youtube e fazer um curso de dobraduras de lençol oferecido de graça por uma marca de amaciantes. Afinal, quero ser cada vez mais perigoso. E como o lençol, talvez devêssemos resistir a sermos bem “dobrados” nas gavetas sociais.

Vamos?







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