O ABERTO, O FECHADO E O ESTUPRO DO BRASIL
Talvez
por culpa de nosso machismo profundamente entranhado (que afinal, afeta
mulheres e homens indistintamente), talvez por nosso narcisismo de raízes
indecifráveis, aprendemos e ensinamos, desde sempre, que a arte de viver
consiste em cumprir estereótipos. Isso feito, tudo sairá bem. Entre nós nenhum
clichê é tão frequente quanto a ideia de que o homem é um ser fechado e a
mulher um ser aberto – que deve se fechar. Ensinamos essa receita aos nossos
filhos. Meninos não choram, não manifestam sentimentos, não se rendem aos
instintos, não frequentam intimidades, evitam opiniões. O homem, para ser homem,
deve estar sempre inacessível, rude, obstruído, fechado. E assim, duro e
absorto, cumpre seu atributo essencial, que é ferir, rachar, promover a fenda,
bisbilhotar a abertura. Como incomunicabilidade absoluta, ele aprende desde
cedo a arte de explorar e colonizar o corpo alheio.
A
mulher não. A mulher é de outra matéria, ensina-se-lhe. Ela nasce previamente
rachada, aberta, disposta para o mundo, trincada ao meio, sendo uma brecha. Por
suas funduras entram e saem as imundícies que a perturbam, que aceleram seus
metabolismos, canalizam suas umidades e desdobram suas lesões que, com certa constância,
irrompem na forma de bolhas, sangues e, sobretudo, palavra. A mulher herda, como
identidade e fisiologia, aquela fraqueza interditada ao homem: ela azeita com
lágrimas seus dramas mais banais, chora e se confessa diante de todos, desnuda-se
despudorada em muitos discursos que facilmente viram melodrama, mexerico,
coscuvilhice. Na mulher, a palavra é a expressão de uma confissão mais radical,
que se expressa em seu próprio corpo na forma de uma entrega: o ventre prenhe revela
o sexo, o seio púbere confessa a idade, as regras mensais expõem,
descontroladas, não as suas sinceridades, mas as suas vergonhas. A mulher está
sempre aberta para a penetração dos intrusos em seu castelo desprotegido. Os
intrusos, por isso, crescem ao redor com olhos e dedos em riste, como cães lambendo
o cio de fêmeas acuadas. Os intrusos assediam, metem dedos, línguas e outras carnes,
sem nenhum pudor. Forçam as aberturas. Vasculham como se donos fossem; como se
de objeto se tratasse. Fazem por necessidade, mas sobretudo, por obrigação. A mulher,
esse ser de fissuras, afinal, foi que se abriu, veio ao mundo provocativa. E aberta,
está disponível, inerte, disposta em passividade para a força do usurário.
No
seu Labirinto da solidão, Octavio Paz
falou dos mexicanos como seres alheios, longínquos e fechados em sua solidão (e
em seu machismo), destacando as lições que ensinam o homem nacional a manter-se
atolado em si mesmo de modo a impedir que o mundo penetre a sua identidade. O homem
não pode “rachar-se”, mostrar fissura, fresta, arrombamento... nada pode
invadir a sua intimidade. Por isso, o homem nunca confessa seus segredos,
jamais tira sua máscara, permanece reservado, falando pouco, contido, troncudo,
indócil. A palavra, sendo abertura para o mundo, nele deve permanecer domada,
retida, sem adereço, fitas e acessórios. Não lhe está permitido
nenhum excesso, principalmente aqueles que acompanham emoções fortes e se
expressam como abraços, beijos e outros descomedimentos. O homem simula, esconde,
disfarça o que nele é emoção e abertura porque não gosta de enfrentar o perigo
de suas frestas. Aberto, teme perder as condições do combate. Não quer abdicar
de si. Ele precisa, afinal, permanecer sempre armado, teso, hostil. Sua vida é a
eterna solidão de si. E embora não saiba, também é ela a sua pobreza, afinal, carrancudo
e fechado, ninguém alcança a riqueza do mundo. A pretensa virtude da
invulnerabilidade masculina é também seu mal-estar e se revela em toda
indiferença, impassibilidade e repressão, não raras vezes crescidas no terreno
das cerimônias, das formalidades, das ordens, das geometrias e matemáticas,
engenharias e constituições, dos ternos com gravatas que limitam os gestos, das
burocracias e das demais toxinas da frustração, que formam o pretenso mundo das
masculinidades no qual ele mesmo, o homem, definha. Separado, todo homem é uma
ilha. A exceção é a embriaguez e a festa. A bebedeira é o único lugar onde o
excesso do homem é admitido, embora ele tema a ressaca como nada. Beber é sua catarse.
Octavio Paz também lembrou que “embriagamo-nos para confessarmo-nos”. Ainda
bem que inventaram as bebidas alcóolicas e os amigos discretos! Beber é
romper-se, irromper-se, descarregar a sua alma, lavar-se na abertura, livrar-se
do fechamento.
Aberta
desde seu nascimento, a mulher vive em íntima comunhão com o mundo, como se estivesse sempre bêbada. E isso a
torna um ser inferior, porque se entrega, porque se abre. Sua “inferioridade é constitucional e está radicada em seu sexo, em sua ‘rachadura’,
ferida que jamais cicatriza”, escreveu Paz. A mulher não evita explosões repentinas, não
controla ânimos, manifesta-se, intervém, enfeita-se, mostra-se, chama atenção. Caótica
e selvagem, ela sofre de seus próprios estereótipos. E mesmo onde os rejeita, é
acusada de ser de novo, pobremente, mulher: “coisa de mulher”, afinal, isso de
reclamar! Reivindicar a si mesma é um modo de negar a sua natureza impessoal:
sua abertura tem a forma de um canal, o que a torna um meio e não um fim.
A
mulher, por isso, não pode ser dona de si mesma. Cabe-lhe conter-se,
aprumar-se, fechar as pernas. Louva-se, não à toa, nas toscas eras em que
vivemos, a mulher recatada e do lar, repercutindo estereótipos em capa de
revista nacional e outros xexelentos folhetins. O recato é o modo de
comportamento masculino que a mulher deve adotar como seu para defender a sua
intimidade, guardando-a para seu digno credor. É o que pensa o pai, o marido, o
filho, o irmão mais velho. A boceta de Pandora, afinal, não pode ser aberta em
qualquer lugar, fora de hora, pra qualquer pessoa. Se isso acontecer, que haja
punição suficiente. A mulher precisa aprender, afinal, a se fechar como seu
homem espera. Recatada, secreta e decente, a mulher rende-se aos poderes
masculinos e a eles serve. Precisa dar-se ao respeito. Fazer-se de dama
comportada. Calar-se, esconder-se, ater-se aos problemas do lar, ficar à sombra.
Diante
da dialética do aberto e do fechado, nossos estereótipos se
reproduzem, se intensificam, se consolidam. A gente ainda não aprendeu que viver
é a arte de provocar sínteses. Marcela está no lar; Dilma foi deposta. Agora os
homens da pátria abusam, fora de casa (em praça pública) dessa puta chamada Brasil.
Sim, afinal a pátria, sendo mulher, merece o estupro coletivo dos velhos
senhores de Brasília movidos a sildenafila. Seus falos obscenos fornicam o
buraco da democracia. A política, agora, renova simbolicamente o modelo (falido)
do macho nacional. Sua vítima somos todos – e todas – nós.
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