O UNIFORME DA BABÁ
A foto de João Valadares, do Correio Braziliense, viralizou
esse final de semana nas redes sociais. A imagem não deixa de ser emblemática. De
um lado, um casal de classe média alta (trata-se do diretor de finanças do
Flamengo e sua esposa) usando camisetas verde-amarelas anti-corrupção e, de outro, a babá
negra vestida em seu uniforme branco empurrando o carrinho com os dois filhos
(também eles, apesar da pouca idade, devidamente uniformizados anti-Dilma). Não
quero entrar no debate infrutífero a respeito das contradições da foto, que
inclui a legitimidade e as justificativas do casal em pleno ato de dever cívico
e o patrocínio de um banco estatal ao time cujo emblema encontra-se estampado
na camiseta de Cláudio e Carolina, nem as corrupções do futebol, nem os outros
uniformizados da CBF que foram às ruas. O que me interessa é o uniforme da babá.
Quem viu o filme “Que horas ela volta?”, lembra bem da
importância higiênica e asséptica que o uniforme exerce na hierarquia doméstica
dos lares brasileiros. A babá Val, personificada por Regina Casé no filme de Anna
Muylaert, se confunde com a anônima da foto de Valadares e traduz a realidade
de outras tantas mulheres que, como sugeriu o empregador, são pagas para isso
e, portanto, devem agradecer por terem seus empregos em época de crise como a
nossa. Nas redes sociais, o patrão sugeriu que até gosta da funcionária, a qual é até tratada com dignidade e é até
mesmo livre para demitir-se caso não
queira passear contra a Dilma no domingo. Às vezes a proximidade entre a vida e
a arte não é pura coincidência. E quase sempre a vida é mais cruel do que parece –
penso nas inúmeras meninas-mulheres-quase-escravas que continuam servindo os
lares brasileiros, sem ainda acessar os mínimos direitos recentemente admitidos
pela nação escravocrata que sempre fomos.
O uniforme tem papel simbólico relevante na medida em que
hierarquiza as relações. A roupa define o lugar de cada indivíduo, deixa claro
quem manda e quem obedece, quem paga e quem recebe, quem dá direitos e quem tem
deveres. No seu ensaio de 1905, “Filosofia da moda”, George Simmel destacou o
fato de que a vestimenta, antes de ser uma projeção de quem somos, forma e
domestica nossas personalidades. Ela diz respeito às distinções sociais e aos
valores que forjam as subjetividades no meio social. Ela atende à nossa
necessidade de diferenciação, tanto do ponto de vista individual quanto
coletivo. Como um fator social, por isso, o uniforme é paradoxal: tanto
diferencia quanto iguala, na medida em que nivela as pessoas e cria
estabilidade social por meio do reconhecimento de classe. Não é por acaso que
os mais pobres costumam “copiar” o que está na moda entre as celebridades:
trata-se de acessar, pela vestimenta, o mundo glamoroso que a televisão faz
entrar em seus lares diariamente e, com isso, recusar a prisão econômica de sua
própria pobreza.
O uniforme tem também, em consequência, um fator psíquico: ele cumpre
a função de adestramento das subjetividades na medida em que dá contornos ao
corpo e limita seus movimentos, sob os olhares do outro. Uniformizados, não
somos nós que expressamos nossas identidades através da roupa; mas, ao contrário, é a roupa
que ordena e demarca quem somos. O modo como estamos vestidos define os
nossos comportamentos: terno e gravata, por exemplo, impedem movimentos bruscos
e gestos alongados, que são adequados quando estamos com roupas esportivas. O
artifício da roupa, portanto, cobre a nudez que nos torna iguais apesar da pele
e nos adapta às circunstâncias. De branco, a moça da foto não protesta,
trabalha. De branco, ela não se diverte, trabalha. E trabalhando, de branco,
ela parece mais limpa e até mesmo um pouco invisível. Uniformizada, ela faz do
branco aquilo que ele era para os discípulos de Asclépio, o deus grego da
medicina: um símbolo de pureza espiritual que, nesse caso, torna possível a
intimidade da babá na frequentação dos ambientes domésticos (a babá, afinal, é
a intrusa mais íntima da vida familiar). De branco, assim, ela está purificada.
De branco, ela reconhece as circunstâncias e se adapta ao seu cargo. E assim,
adaptada, ela é aceita porque, afinal, “sabe” o seu lugar.
No filme, as cenas de Val com o filho único dos patrões, são
incômodas. Enquanto o menino recusa o carinho da mãe, aceita as intimidades da
babá (em francês, o título do filme insistiu nesse aspecto: “Une Seconde Mère”).
Val parece não saber o seu lugar. Mas é Jéssica quem quebra definitivamente a
norma e recusa o lugar social reservado à filha pobre e nordestina da babá.
Entra na universidade que era lugar do filho do patrão. Banha-se na piscina.
Quer ser hóspede e não empregada. Cria conflitos. Enerva as antigas relações. Na
foto, a babá negra veste a sua “segunda pele” (conforme a feliz expressão de
Marshal McLuhan) como um adendo quase desnecessário diante da primeira pele
negra, para a qual a pátria cuidou de garantir, desde 1850, quando da primeira
Lei de Terras, um lugar apropriado: a senzala, os mocambos, as favelas, o
porão, a cozinha, o quarto de empregada, a traseira do carrinho de bebês.
Lendo-se ao inverso: não o aeroporto, o shopping, a mesma manicure, a mesma
universidade. Não. Nunca. Afinal, o Brasil só é "pacífico" porque aqui, pobres,
negros e outros indesejados, sabem o seu lugar. O uniforme, por isso, continua indispensável.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirExcelente. Aliás providencial, pois conheço muita gente que diferencia a senzala da casa grande com o " branco higiênico"
ResponderExcluirExcelente reflexão professor!
ResponderExcluirInspirador!
ResponderExcluirParabéns,muito esclarecedor o paralelo do uniforme com o filme.Adorei!
ResponderExcluirParabéns,muito esclarecedor o paralelo do uniforme com o filme.Adorei!
ResponderExcluirMuito boa reflexão! Adorei!
ResponderExcluirmuito bom o texto! gostei muito!
ResponderExcluirmuito bom o texto! gostei muito!
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