ALETHEIA, UMA OPERAÇÃO DO PENSAMENTO
Agora que a justiça diz ter se aliado
com a verdade para passar o Brasil a limpo, fomos surpreendidos por uma palavra
de origem grega de imensa carga teórica. Antes, porém, de ser uma operação
policial Aletheia foi, durante mais de dois
milênios, uma operação do pensamento. Na etimologia da palavra o a é negação daquilo que o lethes (esquecimento) é. Verdade é
desvelar o que permanece esquecido.
No Hades grego, Lethes é o rio do
esquecimento e da dissimulação. Quem bebe suas águas perde a memória e desaba
no estado da ocultação, associado ao escuro do mundo inferior. Na Divina Comédia, Dante lembrou que suas
águas purificariam todos os deslizes dos pecadores. Melhor do que perdoar é
esquecer. Conta-se que os portugueses acreditaram que o Lethes mitológico era o
Lima do Alto-Minho, até que o general romano Décimo Júnio Galaico, para pôr
fim à lenda que trazia medo aos seus soldados e atrapalhava sua expedição
militar, atravessou-o - estandarte em punho – e desde o outro lado, chamou seus
soldados pelo nome, um a um. Em Xinzo de Limia celebra-se, até hoje, a festa do esquecimento. E o episódio foi
eternizado posteridade afora pelo artista português Almada Negreiros, na
imagem acima.
Orfeu, o poeta grego, muito antes
disso, já conhecia o perigo das águas, em um tempo em que o poeta cantava de
cor, inspirado pelas Musas, filhas da deusa Memória. Orfeu, como se sabe, “não
existe sem Eurídice”, como cantou o nosso Vinícius de Moraes. Depois da morte
de sua amada, viajou ao Hades e atravessou o Lethes. Os deuses, contudo, lhe
ofereceram não a moça que amava, mas um vulto dela, uma “sombra”, um “phasma” [de onde “fantasma”], como nos
lembra Platão no Banquete. Aliás,
Platão deu notoriedade ao rio quando o colocou no centro de uma de suas teses
mais famosas, a teoria da reminiscência,
que tenta explicar a origem do conhecimento. Segundo Platão, todos já vivemos
no mundo das ideias e, portanto, conhecemos a verdade, mas nossa alma sedenta,
ao passar pelas águas do Lethes enquanto migrava para o nosso corpo, bebeu água
que lhe fez esquecer do que sabia (às vezes até demais). Esquecimento, nesse
caso, é ignorância e alienação.
Heidegger, no século passado, recuperou
a tradição do termo e lhe deu grande celebridade filosófica. Aletheia seria a verdade como aquilo que
vem à tona, aquilo que é desvelado como verdadeiro e que não é um conhecimento
objetivado pela racionalidade discursiva desse ou daquele sujeito sobre esse ou
aquele objeto, mas uma compreensão do próprio ser das coisas. O que eu gosto da
proposta de Heidegger é que ela nos deixa pensar uma coisa importante sobre a
busca pela verdade: o autor de Ser e
tempo nos lembra que nem sempre a verdade está no que se mostra, ao
contrário, ela muitas vezes se esconde quando alguma coisa é mostrada. É como
se, ao mostrar, a gente sempre estivesse escondendo algo. Aletheia, ao tempo em que desvela,
também vela. Porque mostra, também
esconde. Parece difícil, mas é simples: quando eu digo para alguém, “veja
aquela flor amarela”, estou desvelando uma parte da verdade da flor na forma do
colorido de suas pétalas, mas ao mesmo tempo estou escondendo outras tantas verdades
na forma de características que eu não destaco, que eu não mostro e que, talvez
por isso, ninguém enxergará. A ideia é simples: há algo da verdade que sempre
está retraído no dizer de quem desvela. Aquilo que aparece como descrição é
sempre, portanto, algo superficial em relação a sua essência, que poucas vezes
é vista.
Aletheia, por isso, é uma operação do
pensamento que quer ver para além do visto, para além do óbvio, por trás das
aparências. Ocorre que na nossa pretensão de verdade, a gente se deixa facilmente
distrair na superfície e não vê o que está escondido. A falsificação do phasma órfico, nesse caso, continua
vigorando, na forma de todos os dispositivos de esquecimento e alienação que
sustentam a nossa cultura, entre as quais, obviamente, estão os aparatos
midiáticos. Como Orfeu, talvez a nossa verdade vire uma estátua de sal ou,
simplesmente, se desfaça em fumaça, como é próprio dos fantasmas. Mostrar um
fato, vender uma verdade, oferecer uma interpretação é sempre, segundo a
operação Aletheia, projetar uma
verdade e esconder outras tantas. Eis a ambiguidade e o perigo da justiça em
sua dimensão desocultante, diante da qual somos convidados a resgatar o terreno
comum onde a verdade dos fatos e a verdade das interpretações se pertençam
complementarmente.
É preciso pensar o que se
esconde. A multidão, contudo, quer espetáculo e gosta da ilusão. Deseja beber,
tranquila, mais água do Lethes, até saciar-se por completo, enquanto o show se
desenrola, sem se importar com a verdade que permanece ocultada por trás da
ação de um juiz eufemístico e as palavras de um ex-presidente que cada vez mais
gente insiste em chamar de histriônico. Quando o show terminar, quem ainda terá
pulmões para respirar o ar puro da verdade, entre a mordaça do conformismo e a
hipocrisia de uma festa imbecil? Quando o show terminar, quem limpará o sangue
que ainda pingará dos nossos punhais, entre o susto e a ressaca? Que Mnemosine nos resgate do Lethes, antes que seja tarde.
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