A URGENTE QUESTÃO DA SOBERANIA NACIONAL E O CONCEITO DE NAÇÃO: CONDIÇÕES PARA SE PENSAR A (RE)CONSTRUÇÃO DO BRASIL
Lilian S. Godoy Fonseca[1]
UFVJM – NEPC/UFMG
Entre março e julho de 2021, o Grupo Soberania Nacional da UFU e o Instituto Schiller Internacional promoveram o Curso de Extensão Internacional sobre o tema O sistema americano de economia política e sua herança crítica. Foram realizados encontros semanais, aos sábados, das 18 às 19h30; o curso foi organizado em 5 cinco módulos, abordando os seguintes temas: 1. As origens europeias do sistema americano; 2. O sistema americano de economia política; 3. List e o sistema alemão de economia política; 4. Marx e List na Rússia e 5. Herança contemporânea do sistema americano.
As aulas ficaram a cargo dos professores: Jairo Dias Carvalho - UFU/MG, Dennis Small - Instituto Schiller Internacional (ISI), Jacques Cheminade (ISI), Tim Rush (ISI), Rogério Mattos – UFF-RJ, Helga Zepp-LaRouche (ISI) e William Jones (ISI).
Cada módulo foi desenvolvido em três aulas[2], contemplando os principais autores e pontos mais relevantes aos respectivos tópicos. Os temas abordados se mostraram fundamentais para pensarmos o recente contexto mundial em geral e, em particular, a conjuntura atual de nosso país. Nossa proposta, aqui, é destacar três aulas que trouxeram elementos assaz pertinentes para uma possível reflexão sobre o Brasil, visando indicar novos rumos para superar o grave momento atual.
Duas delas integram o Módulo 3: aula 1, que abordou o tema: “List, o conceito de nação e a crítica ao liberalismo”, do dia 08/05/2021 e a aula 2 sobre “List e o conceito de forças produtivas”, do dia 15/05/2021; e a aula 2 do Módulo 5 sobre “Álvaro Vieira Pinto - herdeiro longínquo do sistema americano?” do dia 10/07/2021, todas ministradas pelo idealizador e organizador do curso, o Prof. Jairo Dias Carvalho.
No que se segue, buscaremos fazer uma breve síntese dos principais conteúdos abordados em cada um desses encontros. Para começar, apresentamos o pressuposto do curso, assim apresentado por Carvalho:
Qualquer nação pode se apropriar das ideias do ‘sistema americano de economia política’[3], reconhecido como o primeiro sistema econômico anti-imperialista, para construir sua independência, em relação às demais nações. Nesse sentido, trata-se de buscar elementos para se pensar o Brasil hoje, para além das ‘clausuras conceituais’, com vistas à elaboração de uma teoria da soberania compatível com as necessidades atuais de nosso país.
No Módulo 3, o ponto de partida de Carvalho foi a demonstração da relevância da contribuição do economista alemão Georg Friedrich List (1789-1846), fundamental dentro dessa proposta, porque com ele surge uma concepção que visa criar uma teoria da soberania, a ser elaborada com base na realidade de cada nação, para tanto, buscando um projeto de criação de um “sistema nacional de economia”.
List parte, precisamente, da visão de que “uma nação é um sistema de economia” e não apenas um sistema ‘espiritual’ baseado na língua, nos valores e nas tradições compartilhados, como era defendido pelos pensadores alemães à sua época.
O economista alemão visitou a França, a Inglaterra e a América do Norte e utilizou as ideias aprendidas em suas viagens para desenvolver seu próprio pensamento, ultrapassando as concepções de livre comércio de Adam Smith (1723-1790), que List adotou até constatar os efeitos benéficos à indústria de seu país, decorrentes do bloqueio napoleônico de comércio com a Inglaterra, imposto à Alemanha.
Esse fato teve especial relevância na sua defesa de uma política econômica nacional cujo escopo era criar um sistema nacional de economia. Em outras palavras, para List, tratava-se de criar uma nação!
Assim, segundo List, “a construção da soberania nacional envolve a luta no plano das ideias” contra o sistema de Smith que defendia o livre comércio em favor dos interesses britânicos, mas em detrimento da emancipação dos demais países e colônias.
A noção central no pensamento listiano é a constatação histórica de que “Entre cada indivíduo e a humanidade inteira existe a Nação. (...) Segundo List, a Nação não é a soma ou um agregado de partes, mas um todo organizado, articulado, é um sistema. E o sistema nacional é um mundo.” (CARVALHO, 2021).
Destarte, conforme List, o conceito central de seu sistema é o conceito de nação citado acima. E é no interior desse conceito que surge o conceito de forças produtivas, sobre o qual esboçaremos uma breve síntese do curso, conectando-o a outros elementos que ele nos trouxe, para pensarmos o Brasil atual.
A nação não é, portanto, um agregado, mas um sistema integrado formado por uma dimensão espiritual, mas também material, visando manter sua existência de forma autônoma e independente. Isso significa que cada nação pretende alcançar sua autonomia, sobretudo, no âmbito jurídico e é, precisamente, nesse aspecto que repousa o conceito de soberania.
Essa totalidade, sempre confrontada com outras de mesma natureza, só é capaz de conquistar e assegurar sua própria autonomia, ou soberania, na medida em que consegue administrar, satisfatoriamente, seus recursos e riquezas. E aqui emerge, portanto, em List, o conceito de forças produtivas.
O conceito listiano de forças produtivas engloba três diferentes fatores: o capital mental, o capital natural (matérias-primas) e o capital instrumental (materiais produzidos = tecnologia). Portanto, a riqueza de uma nação não se mede pelas mercadorias que produz, mas por sua capacidade de gerar riqueza. E, segundo List:
Tudo o que se gasta na instrução da juventude, na promoção da justiça, na defesa das nações etc. constitui um consumo de valores presentes em prol das forças produtivas. A maior parte do consumo de uma nação deve ser utilizada para a educação da geração futura, para promover e sustentar as forças produtivas nacionais do futuro. (Apud. CARVALHO, 2021)
Razão pela qual, na visão listiana, como ressalta Carvalho, atacar as ciências e as artes de uma nação é deprimir as suas forças produtivas! E, nesse sentido, lhe privar de um dos seus principais recursos e impedir que ela possa produzir riquezas!
Não por acaso, essas importantes formulações de List, feitas na transição entre os séculos XVIII e XIX, colidem frontalmente com a realidade de nosso país em pleno século XXI. De fato, o Brasil parece estar fazendo exatamente o oposto e, assim, comprometendo sua própria soberania.
O que nos leva à aula referente à importância do intelectual brasileiro Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) nessa relevante e urgente discussão.
Segundo Carvalho, dois tipos de pessoas mencionam, hoje, o pensamento de Vieira Pinto: 1. Pessoas não ligadas à Filosofia e 2. Pessoas da área da Filosofia que não leram, mas, ainda assim (e talvez por isso), criticam-no.
A hipótese de leitura de Carvalho assenta-se na sugestão de Henri Bergson (1859-1941), de que é importante distinguir entre as categorias usadas por um pensador para exprimir sua intuição e a sua própria intuição filosófica. Assim, conforme a hipótese de Carvalho, Vieira Pinto (AVP) tem sua intuição a respeito do Brasil e ele busca expressá-la com as categorias de sua época (e nem poderia ser diferente).
Portanto, AVP parte de uma abordagem mais tradicional - com base, por exemplo, nas categorias de centro/periferia, utilizadas pela CEPAL[4]. Mas, segundo Carvalho, em função da ‘querela’ - ainda não superada no Brasil - quanto à escolha entre duas ‘vocações’ econômicas: agrícola ou industrial, tais categorias também estão presentes em sua reflexão. Sendo o Sistema Desenvolvimentista “um capítulo desse debate”.
Carvalho usa a imagem da pororoca para ilustrar a força do pensamento de AVP, que identificou importantes problemas de nosso país, não sanados até o momento. Daí a relevância de lermos o autor para pensarmos nosso contexto atual, visando superá-lo.
O núcleo intuitivo de AVP em relação ao Brasil é o seguinte: O Brasil é uma nação proletária, pois não trabalha para si e não fornece trabalho para o seu povo! Logo, para AVP, o desenvolvimento nacional implica a incorporação do trabalho ao país (e ao povo) e esse seria o princípio fundamental de toda política nacionalista. AVP, destarte, pensou o Brasil a partir de uma filosofia do trabalho. Para Carvalho, se Marx escreveu O CAPITAL, AVP escreveu O TRABALHO (nacional, na periferia mundial).
Assim, AVP observa que entre as nações ocorre a mesma relação de exploração que se dá entre a burguesia e o proletariado. Esse conceito, porém, não é original. Ele já aparece em diferentes contextos, por exemplo, no período que antecede a Revolução Russa; na 3ª Internacional (1o Congresso da 3ª Internacional Comunista, Moscou, 2 de março de 1919) e até no fascismo. Por isso, Lima Vaz (1921-2002), entre outros, criticou AVP considerando que ele propôs um conceito de nação de cunho totalitário.
Embora seja preciso todo o cuidado para se utilizar o conceito de nação proletária, já que ele remete a concepções fascistas, que dele se apropriaram, é inegável a sua riqueza para pensarmos a realidade do Brasil ainda hoje.
O fascismo, com Enrico Corradini (1865-1931), utiliza esse conceito tentando ‘suprimir’ a existência da luta de classes interna (burguesia x proletariado) para enfatizar, apenas, a luta entre as nações (plutocráticas x proletárias). Mas, como ressalta Carvalho, não será essa a abordagem de AVP.
Com efeito, a tese principal da CEPAL - entre 1920-40 - a ideia de centralidade da nação, persiste em AVP e, para ele, ao fim e ao cabo, o que confere unidade a uma nação é a unificação dos interesses econômicos de dada comunidade.
Carvalho reforça que, historicamente, ainda não alcançamos a ideia de uma comunidade internacional e nem todas as nações conquistaram (ou conquistarão) sua autonomia material. Mesmo assim, AVP avalia que o estágio do nacionalismo é provisório e, em algum momento histórico, alcançaremos essa mira de uma comunidade internacional. Mas, para isso ocorrer, todas as nações precisarão realizar a sua essência[5].
A dimensão histórica, atribuída por AVP ao conceito de nação, é indispensável para superar o viés fascista do conceito, pois, para ele, não é o passado originário (e, muitas vezes, mítico) que confere a força e singularidade à nação, mas o seu processo histórico e, nesse sentido, o seu futuro. Consequentemente, em AVP, o conceito de nação (ou mesmo a identidade nacional) é, sempre, transitório.
E, conforme Carvalho, daí se segue a grande contribuição de AVP, com a qual se supera toda e qualquer concepção fascista de nação. Como totalidade aberta, a nação pode se reconfigurar constantemente, tanto do ponto de vista de suas relações internas, quanto em suas relações internacionais. Isso distingue sua concepção da visão fascista, que entende a nação como um todo fechado homogêneo e, portanto, ‘totalitário’.
Logo, conforme AVP, o que difere uma nação de outra é o que ele chama de um princípio configurador. Tal princípio é o seu projeto de destino, que é fundamental para pensarmos, hoje, nosso país, pois, segundo AVP, “Não é a origem comum, mas o futuro comum que determina uma nação”.
A segunda ideia de AVP que o distancia do fascismo e é uma novidade em relação a List (como crítica ao cosmopolitismo precoce listiano) é, portanto, a ideia de nação como um projeto que interdita a prática de ‘culto à nação’. “A gente não cultua a nação”, reitera Carvalho. Segundo AVP, a nação é uma comunidade internamente multipolarizada. Nesse sentido, à ideia listiana de polarização entre as nações, AVP acrescenta a noção de polarização ou contradição interna. Partindo dessa noção, AVP postula uma concepção que, segundo Carvalho, é tanto sua riqueza quanto sua fraqueza: a visão de que a luta de classes não é a contradição principal de uma nação.
AVP introduz, então, o conceito de Bi contradição, conforme o qual cada um dos termos presentes na relação: capital estrangeiro - capital nacional - classe trabalhadora nacional, está em dupla contradição com os demais termos. Assim, conforme o conceito de Bi contradição de AVP:
- O capital nacional está em contradição com a classe trabalhadora nacional e com o capital estrangeiro (explora a primeira e é explorado pelo segundo);
- A classe trabalhadora nacional está em contradição com o capital nacional e o capital estrangeiro (é explorada pelos dois); e
- O capital estrangeiro está em contradição com o capital nacional e com a classe trabalhadora nacional (explora os dois).
Aqui surge, pela primeira vez, o significado da expressão “trabalhar para outro” (exploração), denunciando a dupla exploração da classe trabalhadora nacional: pelo capital nacional e pelo capital estrangeiro. Não por acaso, o trabalho remunerado no Brasil não atende as exigências básicas para a manutenção do trabalhador e sua família.
Então, a questão que se coloca é: O que significa a exploração de uma nação por outra? Aqui, a mais valia é extraída na relação de um país que vende a sua força de trabalho para (enriquecer) outro! Daqui advém o significado de imperialismo: trata-se, assim, da prática de uma nação projetar seu capital no território de outra(s) para, posteriormente, importar de lá os seus lucros. (CARVALHO, 2021). Interditando, assim, a soberania do país que é expoliado.
Nesse cenário, como já dito, o trabalhador brasileiro é duplamente explorado, em função da mais valia e pelo fato de seu patrão ser estrangeiro. Segundo AVP, capital estrangeiro significa, sempre, trabalhar para outro, no sentido de outro país!
A partir de então, AVP passa a considerar a questão não apenas em termos marxianos, mas em termos listianos. A disputa é entre as nações, pela disputa de poder: qual nação se torna parte da força produtiva ou se apropria da força produtiva de outra(s). Ou seja, se o incremento das forças produtivas visa um projeto de desenvolvimento autônomo (soberano) ou heterônomo (subordinado).
Isso significa que, mesmo após uma revolução socialista, um país pode continuar dependente de outro, vide a antiga URSS, em que a Rússia se apropriava das forças produtivas dos demais países a ela subordinados.
Para finalizar, como demonstrado por Carvalho, a análise de AVP é bastante original. A CEPAL fazia o debate centro-periferia do ponto de vista da troca (matéria–prima x produto industrializado); na perspectiva de Lênin[6], o problema era o capital externo que se impõe às nações em desenvolvimento para estabelecer seu próprio processo produtivo e AVP propõe um terceiro nível de análise: o principal problema de um país se restringir a exportar matérias–primas e importar produtos industrializados é que ele não desenvolve suas próprias forças produtivas e a tecnologia nacional. Ou seja, ele se coloca como uma nação proletária e, assim, não se torna um país autônomo ou soberano.
Segundo Carvalho, AVP é o grande criador de um Sistema Brasileiro de Economia Política, conjugando teses listianas, marxianas, cepalinas, lenistas e suas próprias. Essa é a inovação e a maior contribuição de AVP para, juntamente com as ideias de List, pensarmos o nosso país no contexto atual. Nosso principal desafio é, portanto, construir o Brasil como uma nação soberana, com base em um sistema econômico autônomo e não mais subserviente e subordinado a interesses externos.
Referências:
LIST, Georg Friedrich. Sistema nacional de economia política. Tradução Luiz João Baraúna. 3ed. São Paulo: Nova Cultural, 1989. (Os Economistas).
Link da página do curso:
https://filosofiadaufu.wordpress.com/2021/03/17/convite-para-o-curso-de-extensao-internacional/
Link do canal do YouTube:
https://www.youtube.com/channel/UCWHe_ZG5VdJPLQmR2BMIyZA/featured
[1]. Integrante dos GTs Hans Jonas e de Filosofia da Tecnologia e da Técnica da ANPOF e do CNPq.
[2]. As aulas estão disponíveis no Canal do Grupo Soberania Nacional no YouTube e os interessados estão convidados a assistir e compartilhá-las.
[3]. Estratégia de desenvolvimento econômico centrada num sistema de tarifas protecionistas, para promover o mercado interno e estimular a indústria nacional, em oposição ao ‘velho sistema colonial’ ou sistema britânico de livre comércio, de dependência em relação às metrópoles.
[4]. Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, criada em 1948 pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, para incentivar a cooperação econômica entre os países membros.
[5]. Carvalho assinala que essa formulação se parece bastante com a de List, distinguindo-se apenas porque List utiliza o termo potência.
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