TIO IRINEU, O PACÍFICO, UMA DAS 180 MIL VÍTIMAS DA COVID-19 NO BRASIL




Tio Irineu faleceu hoje, como uma das 180 mil vítimas da Covid-19 no Brasil. Seu nome, do grego, significa “pacífico” e faz referência um dos mais antigos bispos e pensadores cristãos, do século II, responsável pela paz com o Oriente.

 

Essa foi a imagem que o meu tio nos deixou. Lá em casa tem uma foto do seu casamento com a tia Mirna, a irmã mais nova da minha mãe. Na fotografia, eles estavam jovens e felizes em frente a um enorme pé de Bougainville (que no sul atende pelo charmoso nome de “três Marias” e em alguns lugares o mais singelo “primavera”). A flor de um rosado intenso, a minha tia vestida de noiva segurando o longo véu nos braços e o tio, esbelto, nos seus dois metros de altura, cabelo penteado acima da testa e sorriso largo espalhado sobre o rosto. Aos nossos olhos de criança, a cena tinha um apelo incontestável e deslumbrante. A gente sempre olhava pra ela como quem voltava a algum tempo remoto quando tudo era brisa e calmaria, quando as pessoas casavam felizes e juravam viver juntas para sempre.

 

Essa volta às origens sempre moldou a presença do tio Irineu nas nossas vidas. Afinal, as terras daquela comunidade rural de Cândido Freire, onde eles moravam, eram as mesmas onde minha vó e meu avô maternos viveram e de onde a nossa grande família Schu plantou raízes. No cemitério centenário contamos os nomes de muitos parentes e rezamos sobre o túmulo da vó Selma e do vô Willibaldo, dispostos para o sol e as lavouras ao redor. Por isso, para nós, as visitas ao tio Irineu e à tia Mirna eram sempre uma espécie de volta à infância.

 

Ir lá, contudo, dependia sempre da chuva. As estradas, a qualquer momento, podiam se transformar num sabão barrento e escorregadio. Uma vez tivemos de descer no lodo e empurrar o carro, que escorregava abaixo como a pedra de Sísifo.

 

Talvez porque soubesse dessas dificuldades, Tio Irineu era o melhor anfitrião que alguém poderia merecer. Sempre nos recebia com o mesmo sorriso fácil, derramado sem pregas, por uma voz forte que beirava o alarido. Falava-nos dos porcos, das plantações, dos filhos, dos projetos... Tudo era transparência e singeleza, declamado em sotaque alemão típico dessa região do Rio Grande do Sul.

 

Agora que o mal do século o tirou de nós, deixando destroçado o coração de nossa tia e primos, podemos lembrar, com ele, de nós mesmos. Agora, sem velório e sem abraços, tio Irineu voltará a ser aquele jovem alto e feliz, em sua foto de casamento, cercado de flores, sob um céu azul, bem penteado e cheio de novos horizontes.

 

Com ele sabemos o quanto o vírus é perigoso e letal. Contra as ignorâncias e teimosias de muita gente, sua morte carrega a mensagem das outras 180 mil pessoas que perderam a vida nesse país sem rédeas: cuidem-se, ninguém está imune a essa tragédia.



 

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