SOBRE A REUNIÃO MINISTERIAL E A UTILIDADE DA VERGONHA







A vergonha é um dos valores coletivos mais úteis e necessários. Desde a infância, ela nos prepara para os limites impostos pela vida social. A palavra vem do latim verecundia e remete ao comedimento, à discrição, ao pudor e ao respeito. Sem isso, a vida social perde suas liturgias e recaímos facilmente em uma barbárie de insultos, afrontas e desacatos, cujo último degrau é a violência.

Dessa forma, a vergonha é uma condição psicológica de controle dos comportamentos. Ela nos ensina que nem tudo pode ser dito, feito ou até mesmo pensado e, sendo assim, trata-se de uma virtude antecipatória e profilática, que nos prepara para evitar o pior. A vergonha, por isso, precede a culpa e até mesmo o remorso: por vergonha, deixamos de fazer as coisas que certamente trarão arrependimento posterior.

Quem tem vergonha não diz tudo o que pensa e não faz tudo o que quer. Ele primeiro avalia suas atitudes e como elas podem afetar a vida dos outros e como os outros passam a vê-lo. Ele sabe que somos desenhados pelo olhar do outro e, de acordo com isso, podemos ter vantagens ou desvantagens sociais. A aprovação ou reprovação das nossas atitudes e palavras pode ser útil para que possamos fazer uma autoavaliação constante de nossas próprias atitudes e, assim, viver melhor em sociedade.

Não por acaso, a vergonha foi tratada por muitos autores ao longo da história da filosofia, desde Aristóteles na Retórica, Descartes nas Paixões da alma, Pascal nos Pensamentos, Rousseau no Emílio, Kant nos textos sobre pedagogia, Sartre em O ser e o nada. Até Darwin notou que a vergonha era o mais fundamental dos sentimentos enquanto Piaget reconheceu sua íntima relação com o respeito.

Hoje em dia vivemos uma crise da vergonha e do pudor. Um dos motivos, entre outros vários, pode ser a hiperexposição frequente nas redes sociais: hoje, praticamente tudo é mostrado e visualizado; vivemos a sociedade da transparência total, em que as câmeras de nossos dispositivos projetam publicamente o álbum da intimidade de nossos corpos e lares. Do ponto de vista individual, já não temos mais motivos para manter nenhum pudor diante do olhar do outro. O resultado é que já não sabemos até onde podemos ir quando se trata de dar vazão a nossas emoções mais fortes. Não raras vezes, por isso, a exposição nos leva à agressão e ao desrespeito: xingamentos, palavrões e outros ódios vigoram entre os que vivem sem vergonha.

Foi isso que vimos em tela pública no vídeo da reunião ministerial de 22.04.20: a nudez inescrupulosa, a prevaricação e o ultraje, que em vários momentos resvala para a ilegalidade, mostra que o nosso é um governo sem vergonha. Quem aceita se tornar uma pessoa pública, não pode de maneira alguma, fechar os olhos para o juízo alheio e sobre o que se diz sobre si. Até Jesus se preocupou com isso: "quem dizem os homens que eu sou?". Todo homem público sabe que as sanções externas são importantes porque sua função é preservar o bem comum. Isso obriga toda autoridade a reconhecer a importância da opinião pública.

A total falta de vergonha nas palavras e nas atitudes por parte do presidente e dos ministros em Brasília, reflete o descaso com a opinião pública, o descompromisso com a orientação moral da sociedade, inclusive com a legalidade. Todas aquelas palavras e gestos, não chocam apenas porque são feios em si mesmos, mas porque remetem ao descaso com o patrimônio moral da nação, os rigores do cargo e, sobretudo, os anseios e as opiniões da sociedade (ou parte significativa dela).

Se, na perspectiva individual, a vergonha é um sentimento pobre, porque demonstra que o indivíduo não é capaz de orientar as suas condutas por si mesmo, ou seja, segundo a sua autonomia; em sentido político, ao contrário, a vergonha se torna imprescindível. Isso foi bem resumido por Spinoza, para quem “a vergonha é a tristeza que acompanha a ideia de alguma ação que imaginamos censurada pelos outros”. 

A vergonha traduz os nossos ideais de auto-respeito e dignidade e nos ajuda a ter melhores juízos sobre nós mesmos. Quem perde a vergonha dá sinal que não tem autoconsciência, que não desenvolve autocrítica, que não se olha no espelho e que, por isso, perde a dignidade e a reverência por si mesmo. A quem falta a vergonha, falta honra e respeito pelos outros e, antes disso, falta apreço por sua própria pessoa. Uma pessoa assim não deveria ter o destino de uma nação em suas mãos.








Comentários

  1. A atitude desavergonhada pode indicar uma provocação à crise e usá-lo como desculpa para a necessidade de declarar abertamente uma ditadura. Belo artigo.

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