PLÍNIO E EU, UM METAPLASMO





Plínio é o meu cãozinho. E, até onde imagino, eu sou dele.

Escrevo esse texto com meu braço apoiado sobre seu corpo magro de animal diferente de mim, cujos sentimentos, afetos e mundos se entrecruzam, contudo, com os meus, traduzindo aquela espécie de simbiose proposta por Donna Haraway no seu Manifesto das espécies companheiras [The companion species manifesto: dogs, people and significant otherness]. Para a autora, viver com um animal de companhia é promover um “metaplasmo”, conceito que ela empresta da fonética para significar as alterações recolhidas por um ser ao longo da sua história, seja pela adição, supressão ou modificação de elementos ou aspectos. É o exemplo das afetações comuns que temos na vida entre os animais não-humanos: ambos, nós e eles, somos alterados na vida comum, cada um a partir de seu universo. Algo que seria assunto de uma bioantropologia requintada, capaz de deixar cada ser no lugar que lhe é próprio, para recolher suas intersecções.  

Plínio, desde que chegou à minha vida, instalou os efeitos desse metaplasmo. Ele aprende e me ensina inúmeras coisas, entre as quais a requalificação das minhas experiências vitais. Creio que precisamos ser confrontados com esse tipo de vida inteiramente outro para descobrir certas coisas que a vida intra-humana costuma ocultar. Mesmo sem saber o que sabe, Plínio leva uma existência que lhe é própria, mas que eu posso identificar como suas lições para mim. Acesso esses ensinamentos por uma espécie de antropomorfismo posto em prática na sua compreensão de mundo e no modo como ele reage às minhas palavras. Pensei em alguns exemplos que, no geral, estão ligados aos seus instintos básicos e à manifestação de seus afetos.

SOLIDÃO: “papai vai trabalhar”, com essa frase Plínio aprendeu que ia ficar sozinho. Ele baixa o rabo e procura um canto para se esconder. Não raras vezes, enfia a cabeça no vão do sofá, como quem não quer sofrer mais um adeus. Com o tempo, ele soube ler a situação pela roupa que eu visto. Como ele sempre me espera no pé do box do banheiro, ele aprendeu que um banho é sempre um risco: se coloco calça, significa que vou sair; se é bermuda, ele festeja. Quando saio e espio pela câmera que deixo na ponta da mesa, o vejo deitado ao pé da porta, à espera. No início ficava com pena, mas agora eu sei: o bom da solidão é que nela a gente pode esperar por aquilo que vale a pena. A solidão é um tempo de espera aproveitada, um tempo, afinal, de preparação para algo novo que chegará em breve.

ALEGRIA: “vamos tchau-tchau”, digo eu com entusiasmo. Esteja onde estiver, Plínio aparece do nada e com ares de trapezista, atravessa a casa à espera da coleira. A frase infantil, emprestei de minha mãe, que dizia aos netos, enquanto abanava a mão. Plínio alegra-se porque a rua é uma experiência central na vida dele, início da manhã e final da tarde: enquanto a gente circula a quadra, ele enfia-se nos jardins, corre na grama e faz xixi (ou tenta) em todos os postes da redondeza. Claro, tudo com uma pompa de rei obrando.

AMIZADE: “cadê o Marx?” é a pergunta que permanece como algum tipo de afeto inexplicável. Marx é o cachorro da família Falabretti e se tornou para Plínio um amigo de infância. O seu nome, imagino, está associado ao passeio e às brincadeiras. Como faz tempo que não se vêm, a frase agora torna o Plínio mais pensativo: ele me olha e roda a cabeça como quem quer entender uma tese filosófica.

NUTRIÇÃO: “comida” é a palavra, obviamente, mágica da casa. Embora Plínio não seja muito interessado em alimento, costuma comer pouco e aos poucos. Mas a quarentena ensinou que ele pode chorar perto de mim e, com isso, obter algum pedaço de frango, cenoura ou brócolis, seus pratos preferidos.

REPREENSÃO: a pergunta sobre “quem foi?” ficou marcada como um evento de advertência a tal ponto que ao ouvi-la, Plínio mete-se embaixo da mesa e permanece com a atenção redobrada, como quem reconhece um crime ou... melhor ainda, como quem jura inocência. O caso, no geral, é um xixi na escada.

LIBERDADE: “vamos tomar banho?” é a pergunta odiosa por excelência. Plínio não gosta de banho no chuveiro e, provavelmente por isso, sua alegria seja absurda quando o ato termina e eu o mando para fora do box como quem sai de uma sessão de tortura. Ele agarra o Alfredo (um cachorro de pelúcia que ele ama) e corre destrambelhado pela casa. Hão de dizer que ele está secando os pelos. Talvez. Eu acho que ele celebra o mais importante de tudo, a liberdade.

BRINCADEIRA: à palavra “cadê?”, acompanhada de um gesto de mãos vazias, Plínio reage com o ímpeto de uma fera e corre atrás de algum brinquedo, qualquer um. Se for um “cadê a bolinha”, ele corre atrás da bola amarela e celebra o fato simples de que possa brincar comigo, que devo puxar o objeto com força por uns instantes e atirá-lo o mais longe possível para que ele traga novamente para mim.  

Num mundo tão cheio de afazeres e pressas, agendas e afobações, Plínio ensina o principal. O resto do dia ele passa dormindo, explorando o apartamento, contemplando o footing da janela do nosso oitavo andar ou averiguando as horas que o vizinho chega ou vai embora, marcadas sempre por algum resmungo ou latido. Se falasse e escrevesse, tenho fé que Plínio seria jornalista. Teria muito futuro. Mas não. Quis o destino que ele fosse melhor, que ele fosse cachorro. E é assim que ele chegou aos meus dias e há de atravessar os seus. Como cachorro, preparando os rituais mais simples e festejando-os com a força de antigamentes, que ele carrega no sangue da espécie: caminhar, brincar, alimentar-se, ter amigos e ficar a sós consigo mesmo (mesmo contra a própria vontade). Plínio é que sabe das coisas. Plínio e eu. Plineu, um metaplasmo.





Comentários

  1. Excelente texto! Só para quem tem um cãozinho em casa para entender cada palavra dita nesse maravilhoso texto!

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