DESCULPE A FILOSOFIA. DESCULPE, HÁ FILOSOFIA.











O professor de filosofia é daqueles seres que precisa se desculpar por existir. “Desculpem, estou aqui para o bem de vocês!”, titubeia entre apaixonado e vexado a cada início de semestre, enquanto eles, os estudantes, olham com estranheza o desengonço do ser que, ali, parece trazer notícias de mil profundezas. Como pode que alguém ainda insista em pedir-lhes que leiam um texto tão velho quanto o de Aristóteles ou aquelas chatices de um Descartes ou de um Kant, entre picumãs e teias de aranha? Como pode que alguém ainda acredite que essas antiguidades caibam no currículo, que tenham hora marcada, prova e outras exigências acadêmicas? 

É preciso convencê-los do valor do pensamento em época em que a ignorância e a preguiça do pensar grassam a todo vapor. É preciso convencê-los da importância da antiguidade em época em que o imediatismo e o utilitarismo reinam incessantes, sob a perenização e a glamurização do presente absoluto. É preciso mostrar-lhes aquela utilidade que esconde nas coisas inúteis; falar-lhes do nada, quando é tempo do excesso; falar-lhes da virtude, quando é tempo de laisser aller

A cada início de semestre, ao professor de filosofia cabe derrubar um muro tão alto que, vez ou outra, ele lhe cai sobre a cabeça. Nietzsche uma vez escreveu que é em épocas de epidemia que os médicos são mais necessários. A frase, além de verdadeira, é imensamente adequada. Quanto mais o professor de filosofia tiver de dizer a que veio, mais a filosofia comprova a sua urgência. Quanto menos desejo pela filosofia, mais a sua necessidade. Quanto mais ela incomodar e causar desconforto, mais ela mostra a que veio. Filosofia, afinal, não é tráfico de utilidades, saberes e informações que se planta à espera de colheita imediata. A tarefa da filosofia, sugeriu uma vez Foucault, é mostrar aos outros que eles são mais livres do que pensavam anteriormente. 

E essa é uma tarefa sempre póstuma, demorada, de quantia duvidosa. Mas a sua liberdade é tão ampla, que nos faz livres primeiro do maior dos grilhões dos nossos tempos, qual seja, a pressa do produtivismo, a validade do lucro e da felicidade fácil, vendida nas propagandas de margarina. Diante dessas expectativas, a filosofia é um esforço para o avesso, para pensar fora da caixinha, problematizar o dado, repensar os valores. E talvez esteja aí a frustração que ela causa. Ela é, como sugeriu Nietzsche, uma escola da suspeita. Por isso mesmo, não se espera dela adequações, ajustes, harmonias... À filosofia pertence, antes, um desconforto só seu. E nele, a sua própria diversão. O que há de inconveniente e constrangedor na sua presença escolar e acadêmica, é o que faz da sua pergunta, uma questão tão central. Sua amolação e seu transtorno guardam o potencial da sua atividade, aquela que descongestiona as mentes, provoca o cansaço, quer acordar os sonolentos. 

Em meio a conjecturas sobre o fogo de Heráclito, o afã (anti)erótico de Platão e os rebuscados discursos de Zaratustra, o professor de filosofia quer encontrar mais: o que ele busca é o ser humano que habita os seus estudantes. E isso não para inculcar verdades onde mora o vazio e a dúvida. Não. Trata-se de outro poder: o poder de despertar o que está adormecido, em potencial. Filosofia é tarefa incendiária. E seu incêndio é o calor amoroso que surge do susto e da admiração e que nos toma inteiros, no amor ao saber – um amor a nós mesmos, um esforço por descobrir quem somos. 

Por isso, a filosofia é vária. Na sua tarefa, ela mesma se contradiz. Sua contradição, contudo, é outro elemento de sua arte. Não existe uma única filosofia. Essa palavra mesmo, é uma abstração oca. Primeiro porque há muitos conteúdos nisso que, genericamente, chamamos de filosofia. Depois, porque há muitas formas de dizê-la, milhares de discursos, milhões de estilos e possibilidades retóricas. E, sobretudo, não há uma filosofia porque a filosofia, para ser o que é, exige a divergência, a verdade procrastinada até o próximo embate, a experimentação do pensamento, o exercício da boa Éris, que lubrifica o pensamento e atiça os ânimos para a projeção de novas interpretações e para o lançamento de novos horizontes de sentido. 

A graça da filosofia são as portas abertas para todos. No seu terreno, quanto mais dissenso, melhor para a verdade, que é a sua sina e o seu paradoxo. Quanto menos consenso, mais ventilação, brisa e refrigério. Verdades fechadas são crimes filosóficos inafiançáveis. Definição única de estilos, briga por performances poderosas em colóquios que contam vírgula de parágrafo enquanto fecha-se os olhos para o mundo ao redor, tudo isso só ameaça o pensamento, só seleciona parceiros suspeitos, imobiliza e intoxica o que, do contrário, poderia florescer ao ar livre. Para ler um texto filosófico, é preciso primeiro pensar no terremoto que ele deve causar. É preciso desejar o seu incêndio. O gosto pela tempestade. O tumulto e a desavença. Para afinal, compreender que onde cresce o que é diferente, reside o que é mais profundo. 



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