UM POEMA PARA IRMÃ DOROTHY, NOS 14 ANOS DE SEU ASSASSINATO.








Pai-Nosso dos caudais de Anapu,
e de seus verdes ruídos acima do silêncio,
onde estavas àquela hora amarga,
distraído entre os tocaris da mata
ou chorando ainda o alto Bacuri derrubado?

Onde estavas àquela hora amarga
em que o tronco bebeu a seiva com pesar
e a dor ressecou os ramos ao redor?
E a escuridão vitoriosa percorreu
o cárcere úmido da madeira?

Comprimida de orvalho e divindades
Uma filha da paz caiu sobre os dias
profetiza das regiões elíseas e distantes
onde te perdes sendo Deus, 
pelas manhãs do tempo.

Ela tinha a idade brilhante dos rios
e da Cueira solitária das sombras
adulava o perigo das alturas.
Na cuia plural dos olhos,
vagarosa brisa desvelava
predicando as sentenças
como há muito não se via.

Onde estavas, ó Deus, quando a bala
atravessou o vento
retilínea e assassina
estendendo no mundo
a mais triste das cores?

A doçura daquela mulher
caída sobre um ombro
ainda nos assusta e insurge
encalhada na memória da nação.

Enfeitado com folhas e pacurus
abraçado por arco-íris
plantado às margens do Anapu
este mesmo corpo, ó Deus,
devolve a sacralidade
às imensas terras da Amazônia
e as tira do esquecimento - por dentro e por fora...

Deitado na lama, ainda cheio de vento
esse corpo espera. 
Aceita-o agora
e cuida com a ternura
que todos queríamos, ainda que tarde,
consagrar-lhe num beijo.




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