FLEXIBILIZAR AS REGRAS DE LEGÍTIMA DEFESA É MESMO MEDIDA ANTICRIME?
Hoje o ex-juiz-hoje-ministro
Moro foi ovacionado pela mídia ao apresentar o Projeto de Lei Anticrime. No Jornal
Nacional, por exemplo, todos os entrevistados foram favoráveis, embora a nota
da OAB tenha passado quase despercebida. O tom geral é de que a proposta recolhe
os anseios da população e cumpre mais uma das promessas de campanha do presidente
adoentado.
Algumas propostas do Projeto, que
precisa ser aprovado na Câmara, não chegam a ser novidade, outras foram
copiadas de legislações estrangeiras e muitas parecem esconder mais do que
mostram.
Uma das maiores preocupações parece ser a nova caracterização da “legítima defesa”. Como defensor dos
direitos humanos, embora não sendo operador do direito, achei a descrição preocupante:
“o juiz poderá́ reduzir a pena
até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer
de escusável medo, surpresa ou
violenta emoção”. O que isso significa de fato? Exemplo mais do que óbvio:
um policial pode matar alguém e argumentar que foi por medo, surpresa ou
violenta emoção. Não precisamos nem entrar no debate sobre o que tal linguagem
sentimentalista representa no âmbito de um crime ou de um julgamento. Fiquemos apenas
com a preocupação ululante: em um dos países em que policiais mais matam no
mundo, isso não vai soar como incentivo ao crime, ao invés de diminuí-lo? Se não,
quem garante? Se sim, como haverá diminuição da criminalidade?
No Brasil, 7 pessoas são
assassinadas por hora. Isso significa 168 por dia; mais de 5 mil por mês; 61 mil por ano. Estamos em uma guerra cujos números colocam o Brasil entre
os 10 países mais violentos do mundo. De todos os assassinatos ao redor do
planeta, 11% acontecem em solo brasileiro. São vítimas da opção pela simples (e ineficaz) repressão violenta e não pela educação,
pela investigação, pela inteligência e pelo combate à impunidade.
De todos os
mortos diários, 14 são vítimas da polícia. No geral despreparada, desregrada, vítima
da própria desgraça que quer combater, a política brasileira herda o que há de pior. Segundo
dados do Ipea, em 2015 o número de mortes provocadas por policiais foi maior do
que o número de latrocínios (roubos seguidos de morte). Dados publicados pelo
G1 a partir de números oficiais dão conta de que o Brasil teve 5.012 mortes
cometidas por policiais na ativa em 2017, um aumento de 19% em relação a 2016. A
mesma matéria (10.05.18) conclui que a taxa de mortes pela polícia a cada
100 mil habitantes subiu e está em 2,4; o Rio de Janeiro é o
estado com o maior número absoluto de mortos por policiais (1.127) e
de policiais mortos (119); São Paulo é o estado com a maior proporção
de mortes por policiais sobre o total de crimes violentos, 19,5%; as regiões
Norte e Nordeste têm oito das dez polícias mais letais do país. Segundo o Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, a letalidade policial aumentou 20% de 2016
para 2017. Todos esses números têm rosto: são homens (92%), negros (74,5%) e jovens
(53% entre 15 e 29 anos), segundo o Atlas da violência do Ipea, que mediu as
mortes nos últimos dez anos no Brasil.
O projeto anunciado hoje, nesse item
específico que trata do direito altamente reivindicado por todos aqueles que
acreditam que o porte de armas é uma saída contra a violência, não estaria
dando um “salvo-conduto” aos policiais? Ela não repercute, na
boca do ministro, a tática anunciada em campanha: “pegar duro contra a
bandidagem”, “se precisar matar, mata”, “bandido bom é bandido morto”? Se não,
quem garante? Se sim, senhor ministro, haverá paz de verdade? Não seria essa lei,
como apontaram inúmeros juristas e defensores de direitos humanos ao longo do
dia de hoje, apenas uma “licença para matar”, que violaria os princípios
constitucionais e implantaria, nas entrelinhas, a pena de morte no país?
A lógica perversa não seria apenas uma quadratura que leva à dizimação dos pobres no Brasil? [1] Primeiro convencemos a sociedade
de que todos os bandidos são nada mais do bandidos, de que todos os bandidos merecem
nada mais do que morrer. [2] Depois armamos
os cidadãos comuns nada menos do que com quatro armas. [3] Agora flexibilizamos as leis
para que todos possam ser inocentados caso usem seus brinquedinhos para abater seus
inimigos nada mais do que com as próprias mãos, contando nada mais do que com a
possibilidade quase certa de que provará legítima defesa. [4] Enquanto isso, desmantelamos
a educação e os projetos sociais, deixando nossa juventude sem futuro, à mercê
da bandidagem.
Quantos passos mais vamos dar na direção da barbárie?
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