O ÓDIO À FILOSOFIA ESTÁ ENTRE NÓS
“Não haverá grandes probabilidades de nos salvarmos,
se não
salvarmos a inteligência.” (José Saramago)
Cresce entre nós, mais uma vez, a ideia de que o filósofo representa um perigo social. Esse chão já foi pisado. Ao lado do pensador colocaram criminosos, comunistas, vermelhos de todo tipo, bêbados, loucos, depravados, sodomitas, homossexuais e outros tantos indesejados. Gente dessa laia em geral, dizem os homens da ordem, deve ser cassada e proibida. Sua peste é seu descrédito. Foi assim no nazismo. Foi assim em todas as ditaduras.
Uma das motivações centrais desse processo é aquilo que o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han tem chamado de sociedade positiva, descrita como um tipo de sociedade que anula toda negatividade, aplainando tudo e tornando raso, em nome de certo conforto trazido pela concordância e pela unanimidade que, por não saber lidar com o diferente, acaba por anulá-lo. Nada pode ser resistente, tudo deve ser favorável. Nessa lógica, da qual se alimentam os regimes autoritários, a história se torna um desenrolar monótono, permeada por uma névoa cinzenta que impede qualquer ruptura e anula qualquer singularidade. Vive-se o que Han chamou de “o abismo infernal do igual”. É para isso que caminhamos quando o senso comum e suas burocracias amorfas orientam as decisões da sociedade, na qual a alienação e a preguiça do pensar se tornam uma coação sistêmica.
Ora, nesse sentido, o ódio à filosofia é o reflexo de um ódio maior e mais perigoso: o ódio ao cientista social e humano, mas, sobretudo, o ódio geral aos intelectuais. Ele se alastra pelo mundo como produto da vulgarização da cultura e do crescimento do mau senso, que é o sentido comum, emocionado, insano e desarrazoado. Se um dia a ciência substituiu a religião na posse da verdade, agora a inteligência é abandonada e combatida pela preguiça do pensar, nascida da sempre maior complexidade com a qual o mundo se revela (pela própria ciência, paradoxalmente). Odeia-se os que pensam porque eles convocam ao pensamento, contrariam a corrente, solicitam tomada de posição. O legítimo intelectual tenta desvendar a complexidade e, embora sempre falhando em sua missão, permanece como uma espécie de desafio para o cidadão comum que, diante do “difícil”, dá preferência ao “fácil” e prefere o comodismo. O resultado é o constrangimento.
Nesse contexto, cabe à filosofia interrogar-se novamente sobre seu papel social. Indesejada, não deve assustar que ela seja incômodo, exceção, extemporaneidade, uma espécie de defesa contra a insipiência e a imbecilidade do pensamento alienado, contra alienação geral, a privação de sensibilidade, a pressa, o excesso de racionalidade (que também é má companhia), a falsificação dos valores, a ignorância e a desverdade que grassam a todo vapor. Não seriam os filósofos, assim, mais úteis do que os homens de farda que querem impor ordem ao país e que definham em meio à servidão voluntária?
A falta do imprevisto, do experimento e da surpresa, a falta da capacidade de realizar as combinações engenhosas que toda boa argumentação exige, leva ao atrofiamento espiritual de nossa época. Quando a autoridade se une à vulgaridade, morre a criatividade. A defesa do filósofo e dos demais intelectuais, passa pela obrigação de recusar a ordem e a normalidade, a capitulação que diminui a intensidade com que a verdade se encontra com a vida, em benefício do conhecimento. Esse é o único caminho contra o dogmatismo e o adestramento que pretendem derramar de novo pesadas nuvens escuras sobre nossas cabeças. Resistamos contra a cegueira.
Termino, como comecei, com Saramago, para deixar clara a minha posição:
“Longe de mim, evidentemente, a ideia de considerar intocáveis os ‘profissionais
da inteligência’. Merecem, como qualquer outra gente, ser expostos no palco da
revista (que deveria ser pelourinho moral, e não o é), mas por motivos que nada
teriam que ver com o facto de serem intelectuais: o oportunismo, o compromisso,
a falta de carácter - quando destas mazelas sofram. Então, sim,
implacavelmente, porque são males do espírito e não apenas contra o espírito. Não
haverá grandes probabilidades de nos salvarmos, se não salvarmos a
inteligência. Até ao dia em que já não farão falta os intelectuais, porque
todos o serão.” (A Bagagem do Viajante)
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