MINHA VIDA COM O PLÍNIO - primeiro capítulo







Todos nós somos um poço de águas desconhecidas. Não sabemos das funduras até que elas nos olhem de volta e que algum reflexo de lá alcance nossos olhos miúdos, cansados da planície seca. Dentro, no fundo escuro, guardamos sentimentos, impulsos e afetos que vez ou outra, sem que a gente saiba porque, vêm à tona. Chamam isso de inconsciente. Força escura, insaciável, meio descontrolada.
Foi isso que me aconteceu no início de agosto, quando eu vi pela primeira vez aquele filhotinho de Shitszu que eu batizei como Plínio, em homenagem ao filósofo naturalista romano, crítico das extravagâncias, que morreu de curiosidade visitando o Vesúvio em chamas. No olhar do Plínio sobre mim acabei por ver as minhas próprias funduras. Com o tempo eu entendi. Plínio vive em silêncio e passa os dias à minha espera. E é sob esse olhar absolutamente despretensioso que eu vou sentindo em mim coisas que eu não conhecia. Só quem tem um animalzinho como esse talvez entenda o que eu tento dizer (e fracasso): esses bichinhos despertam em nós afetos que a gente não sabia que estavam lá dentro, coisas do inconsciente, heranças da espécie acumuladas pelo tempo, infantilidades mil, trejeitos e vocábulos bizarros...
Plínio está no seu mundo como quem não precisa daquelas cerimônias que cercam o uso da racionalidade linguística própria do animal humano. Plínio não sabe de gramáticas e de verbos. Nada de Aristóteles e de Kants. Plínio não precisa disso. Come, bebe e se diverte correndo atrás de uma folha na calçada ou de um pássaro na grama. Ele me atira no cotidiano enquanto parece viver em paz, deixando-me à deriva. Ele está no universo como parte dele, ser entre seres. Dorme naquele sossego que eu nunca alcancei mas que ele me ensina e prova possível. Tem a simplicidade e a ternura de um deus habitando Olimpos e Elísios com a modéstia das autoridades absolutas, contrárias à vasta tautologia dos poderes e disputas humanas. Plínio vive num panteão de coisas imprestáveis.
É para seu mundo preenchido de espera e alegria, que ele me convoca em cada chegada. Cansado de razões e técnicas de tudo, eu deito no tapete e me rendo aos seus afagos. Ali ele carrega o brinquedo com poses milenares enquanto eu penso na sua morte e no quanto esta ignorância o separa de mim. O Plínio vive de esperas e esta talvez seja a marca de seu destino: a expectativa leve das coisas insignificantes. Plínio, contudo, não tem projeto nenhum de vida. E não tem projetos porque não sabe que vai morrer - ou que está morrendo. Para ele a morte não é nenhuma cisma. E ao contrário do que poderia parecer, é esse desconhecimento que o torna aberto e entregue a tudo o que há de mais puro que a experiência de uma vida pode oferecer. Com o Plínio eu passo a acreditar que a ignorância pode ter algum valor. Alguma ignorância. Algum valor.
Por tudo isso, o que me encanta no Plínio é essa sua velhice descarada, toda a eternidade da espécie que ele revela nos gestos e que se manifesta em um cotidiano purificado das racionalidades amarguradas. Plínio está no aberto de tudo o que na vida seduz a gente para o mundo pré-racional, onde a existência parece mais plena e mais... verdadeira. Plínio é aletheia, em novo sentido. Ali, nessa abertura, a gente quer habitar para sempre. Sem palavras. Só com o afeto dessas funduras onde o Plínio está e que eu, ociosamente, tento penetrar. Sua vida é preenchida pela sensação do ser, na forma de um corpo e seus membros, fechados no apartamento ou distendidos na grama do parque. O silêncio do Plínio é a sua forma de confronto com a tagarelice da razão. Plínio está aqui para me puxar até os limites do abismo. Eu sinto que estou caindo.






Comentários

  1. Quem tem ou teve sabe o quanto esses bichinhos dão um significado à nossa vivência no lar. Eles são o peso deles em carinho. Aprendemos a linguagem deles e eles a nossa. Parabéns pela linda iniciativa de incluir o Plínio em sua vida estimado professor Jelson, e que suas doses diárias de cumplicidade sejam transbordantes.

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  2. Parabéns por colocar em palavras tão sabias este cotidiano teu e do Plinio que já tive o prazer de testemunhar!!

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  3. Está aí: uma relação de amor e de carinho despretensiosa e incindicional!
    Esses seres maravilhosos nos fazem esquecer de muitas dores. Ou, pelo menos, anenizam muito. Eles nos trazem a leveza para os dias não tão bons enfrentados.
    Parabéns Jelson pela iniciativa.
    Vc descobrirá coisas incríveis com seu amigo Plínio. Quero conhecê lo!
    Um bjo querido.

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  4. Através desta demostracad de carinho verdadeiro,decidi....acho que quero um "Plinio" na minha vida tbm...bju primo

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  5. O Plínio é sensacional. Parabéns pelo filhinho! Vocês vão ter mts momentos gostosos para aproveitar! 🐶 👏👏

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