O OLHO DE MINHA MÃE










Um dia – eu não sei bem quando – eu olhei no fundo dos olhos da minha mãe. Eles estavam cheios de uma estranheza de milênios, fecundando tudo ao redor com a delicadeza e a finura que ela aprendeu com os bichos, o olho dos canários, a cantoria das araras, a visão de uma borboleta treinada para enxergar as flores e nada mais. No olho de minha mãe eu frequentei essas alucinações de águas, caminhos, céus e vegetalidades. Eu vi cada uma das suas alegrias, as paisagens imensas que ela carrega no avesso do olho e aquelas estradas extensas e intermináveis que ela gosta tanto de andar, para ver e guardar na forma de muitas imagens. Eu vi cada uma de suas viagens, o gosto pelo inusitado, a curiosidade pelo estranho, a vastidão dos horizontes, até onde o olho alcança. E entendi que pelo olho é que minha mãe vive, colecionando figuras como quem planta jardins.

Lá no fundo, também, eu toquei a penosa raiz do sofrimento. Eu vi, como quem frequenta labirintos, o âmago da dor, as noites insones, o cansaço, a fonte das lágrimas, os nossos próprios naufrágios no ilimitado oceano da vida. Eu vi as imensidões do silêncio, quando minha mãe chorou sozinha, penhorada por seus segredos e seu olho era, inteiro, penumbra de catedrais. Vi o que ninguém gosta de ver no olho da própria mãe: o broto retorcido, a secura dos caminhos, o escuro.

Ali, naquele vão do universo, eu vi cada uma de nossas vivências, guardadas para sempre no poço ocular de uma mulher que vê o que vive. E eu vi nele a vida inteira de cada um de nós. A mãe, afinal, é a primeira pessoa a nos ver como somos, desde o instante inaugural. E tudo fica lá guardado. Ninguém é, antes de sua mãe ter-lhe posto os olhos, em reconhecimento. O olho da minha mãe, quando me viu, viu o corpo minúsculo, o medo do mundo, a dimensão do futuro. Eu, quando olhei de volta, sete horas após o meu nascimento, com os olhos ainda úmidos de escuridão, encontrei o maior dos confortos. Na face de minha mãe aprendi o que era cuidado e quis habitar ali para sempre.

O olho de minha mãe tem aquelas pequenices de antigamente. É ele que acompanha nossas despedidas. É sempre nele que dói a última das lágrimas. Mora nele a fragilidade da vida, o desgaste do tempo, a memória do que fomos, a dor de nossas perdas, a saudade... tudo o que permanece dentro, guardado como tesouro. O olho de minha mãe é o baú da família, a arca de nossas raridades. Sempre que a gente precisa, vai lá buscar recursos. Temos nele, o repositório do amor. Para ele voltamos de novo, como quem procura sua fonte. Basta vê-los de longe, basta que ela deite seu olhar sobre os nossos, basta esse encontro de mistérios, para que os dias se ascendam na plenitude. O olho de minha mãe dirige-nos ao centro, reorienta-nos, devolve-nos aos eixos. E é sempre para ele, de novo, que nós voltamos, pelo simples desejo de sermos vistos por ela. Mal vamos chegando, o seu olhar estende sobre nós a brisa das claridades. A gente se encontra de novo consigo. A gente não precisa de muito. A gente só quer olhar na mesma direção.






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