ANIMAL, AMIGO OU REFEIÇÃO? SOBRE "OKJA", O FILME
Venho
de família de pecuaristas.
Meu pai, antes de ter ou desejar terra para semente, sonhou com bichos. Não lembro de ter vivido em um lugar que não tivesse por perto algum tipo de ave, suíno ou bovino. Não que eu tenha vivido na roça,
mas a roça sempre viveu em mim. Acho que muito antes de eu ter me encontrado
com o Drummond de Boitempo, eu já sabia, por experiência própria, das
coisas que ele escreveu: “Entardece
na roça/ de modo diferente./ A sombra vem nos
cascos,/ no mugido da vaca/ separada da cria./ O gado é que anoitece/ e na luz que a vidraça/ da casa fazendeira/ derrama no curral/ surge
multiplicada/ sua estátua de sal,/ escultura
da noite. [...] No gado é que dormimos/ e
nele que acordamos”. Os
bichos, contudo, estavam na minha vida sempre distantes, na sua vida de bicho, com
uma presença oblíqua. À exceção de meu cachorro Totó, que ficou
como mito dos dias primaveris de minha infância invernal no
interior do Rio Grande do Sul, lembro dos bichos como uma presença incômoda.
Outro
foi o caso da minha sobrinha, Isabella, que amava uma galinha vermelha fujona e
barulhenta. O bicho, como se sabe, tem ares ancestrais, cacareja à beça e
revira vasos e canteiros como uma topeira marsupial. Toda pena, pés e bico, não simpatiza com insetos e nem com brotações. Tem
gosto pelo terreiro como ninguém. Isabella,
por isso, deu de amar um bichinho de difícil personalidade – o
amor é mesmo um sentimento estranho. Fato é que um dia, porque era chegada a hora da Gumercinda (provavelmente
galinha tem seu destino traçado em algum lugar, como alguns humanos) e
por falta de opção para o almoço, o bicho foi pra panela. Isabella, como se deduz, chorou
abundante e nunca mais comeu carne de ave. Enterrou as penas da galinácea fêmea entre
as rosas despedaçadas.
Lembrei
da Isabella quando assisti, essa semana, o filme Okja, do sul-coreano Bong Joon-ho (Netflix). O filme, não apenas toca em uma questão central do nosso tempo (a indústria alimentícia e os horrores sofridos
pelos animais nos locais de confinamento), como o faz de uma maneira poética, infantil.
A metáfora amorosa serve de fio condutor para uma trama carregada de mensagens a
favor dos direitos dos animais, denunciando todas as verdades indigestas que
estão ligadas à criação e
matança de nossa comida. No
filme, o bicho adorável, alterado
geneticamente (ou seja, biotecnologicamente) e apresentado na forma de uma “superporca”, contrasta com a rudeza da vida rural de uma menina que, sendo
humana, mantém uma proximidade com Okja que quebra
as antigas barreiras entre gente e bicho. Bicho parece gente; gente parece
bicho. Nenhum tem medo do outro. Mikha é como o Emílio de Rousseau: inteiramente educada pela
natureza, entre plantas, animais e cachoeiras. Ela e seu avô, naqueles
confins do mundo, sintetizam o ser humano em “estado de natureza”, entre arrozes e legumes, longe dos vícios da sociedade carnívora
(ou carniceira?), marcada pelo avanço capitalista da indústria alimentícia,
seus sangues, seus venenos e suas febres. Natureza e civilização, essas antigas oposições, comparecem no filme como inconciliáveis. O verde da vida bucólica das montanhas sul-coreanas contrasta com o cinza da cidade, monótona, consumista, ocupada, repleta de gente querendo comer bicho. No
meio está o amor de uma criança pelo seu animal.
O
filme é um soco no estômago. Embora haja muita distância entre a galinha da Isabella e a superporca de Mikha, principalmente por
causa da criação industrial baseada na alteração genética do segundo caso e do seu
inverso, o cage-free do primeiro, a lição dessas meninas é a mesma. Comprimidos, deformados,
drogados, estressados e abatidos, os animais que chegam às nossas mesas reivindicam seu direito próprio. Não são eles, afinal, sujeitos sensientes? Não devíamos amá-los e protegê-los? Veja o filme e tente pensar nisso... E se quiser se aprofundar, leia o livro “Filosofia animal: humano,
animal, animalidade”,
que eu organizei no ano passado (jelsono@yahoo.com.br).
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