RADUAN NASSAR E O DELITO DO ARTISTA ENGAJADO
O artista é, quase sempre, um ser polêmico. Ele é como aquele que deixou
alguma pérola muito preciosa rolar para baixo de um móvel e, na procura, põe
a casa no avesso, abre gavetas e vê abismos, racha paredes a marretadas e
aterroriza a vizinhança à procura de preciosidades para, afinal, confundir sua esfera
brilhante com alguma semente qualquer, que ele carrega vida afora, como se joia
fosse e como se valor tivesse. Gente assim, além de rara, anda meio fora de
moda. Em épocas em que os cérebros das maiorias, no que ele tem de melhor, que
é a capacidade de análise crítica, parecem ter sido sugados através do ouvido pela
seringa televisiva, pede-se ao artista o silêncio obsequioso, o cinza dos
muros, a proteção cômoda da ignorância. Afinal, em épocas assim, o artista deve
pintar quadros com lírios, recuar ao lirismo insosso, falar das praias do país
ensolaradas, tra-la-la-la-lá.
O artista, como o intelectual (ou até mesmo como intelectual) vive a tensão de seu tempo e quer mais. Quer pensar
no campo autônomo que foge dos muros particulares de governos de qualquer tipo
e é desde aí que ele manifesta suas posições, embora, como bem apontou Pierre
Bourdieu, ele o faça ultrapassando aquela perícia que lhe é própria, para falar
sem nenhuma legitimidade, como artista que é, sobre temas que lhe são
conhecidos apenas como ser humano e cidadão do mundo que é seu. Tal inconveniência
o torna um ser incômodo e leva muitos de nós a achar que ele não tem direito de
falar de coisas que não sabe. Que o artista fale apenas de suas letras, de seus
ritmos e de suas tintas. Ponto final. Nada mais para ele. Seu engajamento será
sempre seu crime. Mais do que isso, o artista, em fala pública, chega a ser
repugnante e seu discurso vira transgressão. A maioria quer sair da sala. Uns cospem.
Outros vomitam.
Isso aconteceu recentemente, quando a equipe do filme Aquarius mostrou ao mundo seus recados
em papel sulfite contra o golpe no Brasil. Aparentemente, pagaram um preço bastante alto pelo delito de dizer o que pensam e, ainda mais, porque isso era
reconhecer publicamente o “esquerdismo” de suas posições. Essa semana, ao receber o prêmio
Camões, o grande Raduan Nassar repetiu o gesto de protesto, em frente às
autoridades da pátria que cancelaram discursos para se explicar, antes de
saírem apressados, ao modo dos incomodados. Não precisamos dizer que Nassar é um
dos maiores escritores da língua portuguesa (o prêmio que lhe foi outorgado lhe
dá esse reconhecimento, afinal) e que ele é de fala pouca, embora venha
denunciando insistentemente o ataque à democracia brasileira por parte daqueles
que orquestraram uma crise sem precedentes na história do país. Com sua fala,
essa semana, Nassar transgrediu as regras que ele próprio impôs para si na
forma da discrição e, principalmente, aquelas que obrigam o artista a
permanecer fechado na sua arte. O Nassar dessa semana é o protótipo do
intelectual que vive a bi-dimensionalidade apontada por Bordieu: ele deixou o
seu recolhimento para expressar o seu
engajamento. E ao fazê-lo, tornou-se problemático,
indesejado, enfadonho. Há gente atirando ao fogo seus livros e praguejando suas
atitudes.
Ao manifestar-se publicamente, Nassar não fugiu da literatura que
lhe colocou entre os maiores escritores do mundo. Ao contrário, Nassar
transformou a celebração de um prêmio em uma amostra de grandeza do artista e
do intelectual que exerce a sua vocação ao usar a palavra para gerar senso
crítico e arejar a cultura da distração, em um país de panelas silenciadas diante
do impudor completo de quem ocupa, ilegitimamente, os postos do poder. Em São
Paulo, diante do ridículo do ministro da cultura, Nassar não só achou a sua
pérola, como nos ofereceu alguma luz para que nós também encontremos a nossa. Mas
para isso, é preciso primeiro que estejamos dispostos a procurar.
Sabias palavras... É realmente triste ver um povo gigantesco como o povo brasileiro que está com suas panelas silenciadas, achando que a crise acabou e que tudo voltou ao normal após a saída da Dilma do poder, a corrupção acabou, todos estão alegres, felizes e saltitantes, apenas esperando a REDE GLOBO mandar eles para as ruas novamente bater suas panelas... É triste um povo que não pensa...
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