O DISCURSO DO ÓDIO JÁ PRODUZIU 107 MORTOS EM 2017: nossas mãos também estão sujas de sangue
Na Turquia, às margens do Bósforo, um Papai-noel
disparou contra uma boate lotada, onde dezenas de pessoas comemoravam a chegada
do ano novo. Naquele salão, 39 corpos caíram sob pólvora assassina e outros 70 foram
marcados pela dor da tragédia. No Brasil, a essa mesma hora, passava um pouco
das oito da noite, e um outro atirador preparava-se para invadir uma casa e
assassinar a própria família, incluindo seu filho de 8 anos, a ex-esposa e
outras mulheres que ele chamou, perversamente, de “vadias”. O assassino de
Campinas tirou a vida de 12 pessoas, reivindicando as honras de um “homem de
bem”. Horas depois, no Amazonas, esse rincão desconhecido da pátria, 56 homens
foram assassinados em uma das maiores matanças prisionais da história nacional.
Dias antes, em pleno Natal, o vendedor ambulante Luiz Carlos Ruas foi espancado
até a morte por dois jovens que também reivindicaram a honra de “gente boa”, embora
tenham matado um homem porque ele, ao que tudo indica, defendera um homossexual
que os dois primos agrediam no escuro de alguma esquina paulista.
A contabilidade
dos mortos dessas tragédias é, por si mesma, assustadora. A violência dos atos,
o pavor dos acontecimentos, o terror dos relatos, a frieza dos assassinos...
tudo soa hediondo e revoltante. Mais assustador ainda é o discurso que os
legitima, o ácido do ódio que carcomeu os sentimentos dos assassinos e de quem
os apoiou, posteriormente, nas redes sociais. Tudo junto, esse quadro de odiosidades
forma uma imagem absolutamente pavorosa de nossos fracassos como nação. Diante desses
fatos, nossos discursos de paz, direitos humanos, respeito às diferenças, amor
ao próximo, liberdade de opinião e todas as outras locuções que fazem parte de
nossos votos de final de ano, ficam sem valia. Ainda mais quando eles mesmos,
na tal referência à pretensa “honra” e ao “bem”, viram argumento que,
invertido, pretende legitimar a barbárie e angariar seus torpes adeptos.
No caso do Brasil, o discurso do ódio, pregado por
políticos e autoridades em rede nacional, é parte da orquestra macabra que
torna todos eles corresponsáveis pelas atrocidades sofridas diariamente por
mulheres, estrangeiros, homossexuais, presos e outras gentes “sem importância”.
A autoridade pública não deveria estar autorizada, em nenhuma hipótese, a essas
prevaricações e a sociedade não deveria aceitar passivamente essas depravações,
que levam o país a um absurdo estado de licenciosidade em relação aos direitos
humanos. Não deveríamos aceitar o fato de que um deputado federal elogie um
torturador em rede nacional com uma ironia cáustica; que se aplauda os
reiterados discursos contra a igualde de gênero; que se pregue o ódio aos
adeptos desse ou daquele partido; que se cale diante dos defensores da volta da
ditadura e até mesmo que se aceite marchar ao seu lado em praça pública, sob o
mesmo uniforme e os mesmos gritos de guerra; que não se revolte quando alguém se
refere a uma das leis mais importantes na defesa das mulheres como “vadia da
Penha” e outras alcunhas depreciativas; que se fale despudoradamente contra as
cotas para negros, pobres e indígenas nas universidades sob a justificativa dos
velhos privilégios; que se frequente as redes sociais sob o anonimato de
codinomes para destilar intolerância, machismo, homofobia, xenofobia, fascismo
e outras peçonhas... Uma tal sociedade nos faz a todos, pela omissão, corresponsáveis
pela violência que se apoia nesses mesmos discursos e que é o seu produto mais
acabado e mais terrível. Na conjuntura brasileira atual, tais atos se fundam no
frequente e despudorado ataque à democracia (insistentemente enfraquecida pelos
eventos de 2016), aos modelos educativos em vigor (em especial às disciplinas
de humanidades), às políticas sociais afirmativas e a todo discurso dos
direitos humanos, associados agora ao que a mídia vem chamando, na forma de um
insulto, de “esquerdismo”.
O problema da violência, como muitos defendem, não é
a crise econômica. O problema da violência é a crise ética e moral que afeta o
nosso país de forma surpreendente e que se revela na omissão, nos discursos e nas
atitudes cotidianas, muitas das quais aparecem travestidas daquele “bom-caratismo”
reivindicado pelo assassino de Campinas. Por isso, os crimes desses dois dias
de 2017 não são crimes isolados, porque estão costurados com os mesmos
argumentos e são parte do retrato da crueldade cotidiana vivida por milhares de
pessoas anônimas, violentadas e mortas uma a uma, sob o silêncio do Estado,
ocupado consigo mesmo, os cortes de verbas, seus asquerosos conluios e seus
jantares maiúsculos.
Um país que dissolveu, em primeiro ato do atual governo,
o Ministério das Mulheres, dos Direitos Humanos, da Igualdade Racial e da
Juventude e que tem seu primeiro escalão de governo formado apenas com homens
brancos, velhos e ricos, é um país que se encontra despreparado para enfrentar um
problema tão grave.
Enquanto continuarmos achando que as questões de gênero
não podem ser discutidas em sala de aula, que direitos humanos é assunto de
bandido, que a desigualdade na distribuição da terra e da renda é tema interditado
nas pautas eleitorais, que os direitos das populações indígenas e afrodescendentes
não é um assunto de todos, que a situação dos presídios não nos interessa... seguiremos no corredor da barbárie, com as mãos sujas de sangue. Como
alternativa, é preciso retomar com urgência a luta contra as pautas
conservadoras dos congressistas, a Escola sem partido, a depredação dos
direitos trabalhistas, a elitização e seletividade da justiça e os cortes de
investimentos em áreas sociais. Do contrário, vamos continuar contando os
mortos sob o véu da nossa própria omissão e responsabilidade.
A banalidade do mal é uma praga que já contaminou a sociedade contemporânea, em tempos não tão remotos da nossa história e volta com tudo no século XXI.
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