CIDADE LINDA É CIDADE SEM GRAFITE?



Tirei essa foto em Cuauhtémoc, no Centro Histórico do México. O grande mural de grafite dessa rua lembra a tradição dos grandes painelistas mexicanos, que incluem Diego Rivera e José Orozco, que estão em exposição agora mesmo no Grand Palais, em Paris (veja fotos abaixo).



Não é de hoje que a arte é tema polêmico. Platão expulsou os artistas da cidade perfeita (a sua República), entre outras coisas, porque dizia que eles não tinham compromisso com a verdade. Camus insistiu no caráter arbitrário do artista na sua osmose com o absurdo que é ele e o que ele produz. Walter Benjamin criticou a reprodutibilidade técnica da obra e a perda de sua “aura” em nome do comércio do pobre e do pouco. Mas foi David Hume quem tentou enfrentar a controvérsia da arte a partir de um ponto que me interessa especialmente aqui: ele se perguntou sobre a existência de um “padrão do gosto”, ou seja, da pergunta sobre se há um único modo segundo o qual cada um de nós acessa a beleza. O principal argumento de Hume é que o gosto estético depende de, pelo menos, duas coisas: a diferença de humor da pessoa que observa uma obra de arte e os costumes e opiniões próprios da época e do país onde ela vive. O fracasso no estabelecimento de um padrão para o gosto é evidente: há divergências tão significativas nesses dois aspectos que a arte, para ser arte, deve permanecer sendo uma polêmica e um campo de batalha, como Nietzsche e seus sucessores foram capazes de compreender. E isso significa o seguinte: a arte é um enigma a ser decifrado. A arte não existe em si mesma, ela não está dada de uma vez por todas e sua maior potencialidade reside mesmo na pergunta que cada um de nós deve fazer diante de uma obra: “isso é arte?” ou ainda “por que isso é arte?”, “por que isso merece estar em um museu?”, “por que essa pintura faz jus a esse muro?” Para mim, quanto mais uma obra me coloca diante dessas questões, mais ela exerce o seu papel artístico.
Se esse argumento estiver correto, então é preciso que uma expressão artística esteja sempre mais distante de um determinado padrão pré-estabelecido para que ela se consolide como arte em sentido próprio. O padrão do gosto, por isso, é a anulação da arte. Não há arte quando tudo está igual. Qualquer um de nós que entre em algum museu ou galeria de arte contemporânea há de sentir essa interrogação na forma de uma aceleracão nos batimentos cardíacos. Nesses corredores, há muita inconveniência, esquisitice indecifrável, obscuridades e descontornos, estranhezas e avessos. E porque é assim, uma visita ao Tate Modern de Londres, por exemplo, é um acontecimento quase cabalístico, pelo simples fato de que ali, alguns sacos de areia que parecem bactérias mortas ou algumas peças de lata alçadas indecifravelmente para o alto por manivelas desconexas, pode se tornar, ao olho que estranha o que vê, uma experiência estética. Isso porque o olho vê melhor o que ele estanha. O olho vê melhor quando o que é visto incomoda. Azucrinar a mente é a missão do olho. Poucos foram tão longe nisso como Duchamp, com aquele mictório que se chamava “Fonte”. Desde então a gente vive de incômodos com a arte. Mas não desses incômodos estéreis. Vivemos da maledicência das expressões carregadas de sentido, vivemos convocados para a decifração, atiçados pela ira que a obra provoca, pela vontade mesmo de destruí-la, de fazê-la em pedaços, de apagá-la. Também como Édipo, nesse caso, ou interpretamos o enigma ou somos devorados pelo monstro que nunca dorme.
Há muito já se sabe que o grafite é forma de expressão artística e que, como tal, atira o enigma, de ponta, no olho dos cidadãos urbanos que correm apressados de cá para lá. E pode sangrar, sim. Sangrar no feio de seus arranjos ou no simpático de suas mensagens, no provocativo de sua sem-vergonhice ou na harmonia portentosa de suas cores. Não importa. Como arte, o grafite está carregado de discursos, dizeres encaracolados nas dobraduras do que não é dito, mas mostrado. Nele moram gentes e suas interrogações anônimas, seus mundos, suas denúncias, suas alucinações. Gentes muitas vezes proibidas, para quem a cidade virou as costas, mas que precisa da parede como material para sua obra. Nesse tipo de arte, a cidade é a matéria da obra. Não existe grafite sem cidade. No grafite, a cidade é um grande lugar de experimentação, uma soma de possibilidades. Sem a cidade, a obra não existe. Sem muros, ela fica sem lugar. E é justamente assim, na forma do grafite, que a arte se apresenta como uma crítica ao lugar, ou uma crítica ao não-lugar que toda cidade é, ao lugar que ela nega, que ela apaga, que ela esconde. Por isso ele pode ser tão desconfortável e, ao mesmo tempo, tão promissor. O grafite recoloca a pergunta sobre a cidade que queremos.
Agora, proibido e coberto de tinta, mais do que nunca, o grafite roga por nós. Com o desconforto que a boa obra de arte gera, ele contesta a higiene e a limpeza de quem quer a cidade só para si, no estilo clean de seus apartamentos decorados segundo o modelo das vitrines de loja de móveis. Agora a estética do grafite se tornou, pelas mãos do prefeito, a contestação da mesma síndrome de limpeza que expulsa ciclistas e transeuntes das ruas para dar lugar à velocidade do automóvel, que elimina moradores de rua, lava praças a jato e tenta espalhar o conforto da classe média (em sua maior parte carente de interrogação reflexiva) sobre o que antes era sinal de incômodo. A tinta cinza que cobre os grafites da cidade que quer ser limpa é só mais um sinal da busca vã pela neutralidade típica daqueles que não gostam de ir além da superfície. Dos que acreditam que uma operação lava-jato pode sanar todas as feridas. Dos que esperam por salvadores da pátria, vestidos de garis e expulsando jovens das ruas a chineladas. Dos que se deliciam com os telões iluminados da Broadway e com o mau gosto de seus outdoors. Dos que se sentam nas arquibancadas de Nova Iorque para assistir ao ridículo daquilo que eles não podem comprar – mas sonham. Dos que não se incomodam com as propagandas do capitalismo que fecham todos os horizontes e escondem a pobreza na via do aeroporto. Dos que gostam de limpeza porque estão sujos por dentro.

Eu também quero uma cidade mais bonita. Uma cidade para todas as pessoas. Uma cidade na qual os cidadãos cuidem dos seus próprios jardins porque eles habitam suas próprias casas. Uma cidade onde o patrimônio público seja preservado por todos. E que os muros sequer sejam necessários. E que as praças sejam lugares de encontro de crianças, cachorros e pássaros. Eu queria que todos os prefeitos do mundo parassem de gastar dinheiro com tinta cinza e se preocupassem com os problemas mais urgentes – esses, sim, que enfeiam e envergonham o nosso mundo: crianças com fome, gente sem casa, professores mal pagos, escolas sem estrutura, postos de saúde sem equipamentos e profissionais, praças sem segurança... E quanto a isso, quem sabe os grafites poderiam ajudar, não só enfeitando as ruas da cidade, mas questionando a respeito de seus destinos. Não. Cidade linda não é cidade sem grafite. Cidade linda precisa ser linda por dentro, desde suas entranhas, o que significa ser capaz de incluir a todos e integrar todos os discursos. Talvez assim ela seja, afinal, linda também por fora.










Comentários

  1. Oi, Jelson!

    Aqui é o Mateus do Vooozer, uma startup que nasceu para dar voz humana à internet. Gostaria de conversar com você apresentar o Vooozer e mostrar como podemos ajudar seu conteúdo a chegar em ainda mais pessoas. Através de que e-mail posso entrar em contato?

    Grande abraço,
    Mateus do Vooozer

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  2. Que texto inquietante! E artístico - arrisco dizer. Pois como exposto nele mesmo, uma das características da arte, é a de inquietar. Fantástica tua abordagem: crítica e de uma sensibilidade ímpar!

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  3. Que texto inquietante! E artístico - arrisco dizer. Pois como exposto nele mesmo, uma das características da arte, é a de inquietar. Fantástica tua abordagem: crítica e de uma sensibilidade ímpar!

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