ANA JÚLIA, A ESTUDANTE DO PARANÁ: UM DAVI CONTRA GOLIAS
“Quanto mais pode a fé que a força humana!”, registra
Camões no canto III d’Os Lusíadas, em
referência ao esforço do jovem Davi, fraco e mal vestido, que se atreve a
enfrentar o gigante Golias na luta improvável de um único ato. O pequeno
diante do grande é tema do livro bíblico do profeta Samuel que conta a história
do maior rei de Israel. O pequeno dispunha de uma bênção de dignidade que
faltava ao grande: nenhuma armadura que não fosse uma atiradeira, algumas
pedras lisas e a coragem suficiente para derrubar o temido guerreiro filisteu. Uma
bravura colossal que Michelangelo entalhou nos cinco metros de sua pedra, para
que a posteridade não tivesse dúvidas sobre quem era grande naquele campo de
batalha. Ali, no mármore branco, o Davi de Florença reúne as forças para lançar
a pedra, carregando no olhar a tenacidade e a valentia da glória premeditada de
um jovem contra os tiranos de um povo. Davi, por isso, não era incauto. Altivo na história, ele segue sendo advertência aos poderosos e esperança aos oprimidos
de toda espécie. De pé diante do seu algoz, o jovem Davi revisa Camões para
mostrar que a coragem vale mais do
que o poder.
Embora a imagem possa parecer simplista, vi um pouco
de Davi no ato de Ana Júlia diante dos 54 deputados paranaenses, sua coragem e
sua verdade. A voz estremecida da estudante, o nervosismo e o choro contido, traduziram
a vulnerabilidade dos jovens que ocupam as centenas de escolas públicas ao
redor do Brasil, única voz contra os desmandos presidenciais nesse tempo de
panelas caladas por obséquio. Enquanto discutem a legitimidade da iniciativa,
os senhores da pátria formam maiorias para votar medidas que atacam os direitos
sociais conquistados nos últimos anos. Esses jovens estão diante dos homens
brancos e velhos que tomaram o país de assalto e iniciaram, despudorados, o
desmonte da educação. O presidente da Assembleia Legislativa do Paraná
sentiu-se ofendido e quis cortar a palavra, anunciando a presença da jovem como
uma espécie de favor: “eu peço o silêncio de vocês, se não eu encerro a sessão”,
declarou o nobre deputado, ecoando o lema mais atual da política brasileira,
que pede contenção e obediência, ao invés de pensamento crítico. “Eu exerço a
minha autoridade, democraticamente permiti que vocês viessem aqui”,
complementou. Em uma frase, a história inteira de uma nação vítima de senhores
que “mandam” e “permitem” que o povo fale apenas quando eles quiserem, tão só o
que lhe for autorizado, como se tolerassem a democracia como um regime
indesejado e como se a voz do povo e o pensamento crítico fossem uma espécie de
enfermidade social. A fala do deputado Ademar Traiano (PSDB!) demonstra por que
o governo não tem conseguido dialogar com os estudantes, essa parcela de Davis
que continua a postos, bodoques a tira-colo, enfrentando seus gigantes: ele
simplesmente não quer. Não interessa o diálogo àqueles que impõem à força medidas
planejadas em suntuosos jantares que ferem princípios constitucionais e comprometem
o futuro da juventude. Justamente o diálogo, que foi o ponto central do
discurso de Ana Júlia!
Ela, a menina, contudo, estava lá, de pé. Desculpou-se
e esclareceu a legitimidade da luta dos estudantes. Criticou o abominável
projeto “Escola sem partido”, a PEC 746 e a PEC 241, esta última classificada, um dia após o seu
discurso, como “injusta e seletiva” pela Conferência dos Bispos do Brasil
(CNBB), porque elege os pobres para pagar a conta do descontrole de gastos do
país e da corrupção dos poderes. A CNBB está com Ana Júlia, como se vê, porque
entende que a MP 241 torna o Estado um privilégio de classe e ameaça os
direitos constitucionais. Temer e seus comparsas querem derrotar Davi com a
força de muitos Golias. Do seu lado os senhores do capital financeiro, os que
lucram com as altíssimas taxas de juros, os agiotas de plantão, os donos das
fortunas sem imposto e os que não querem auditar a dívida pública para esconder
as verdadeiras motivações da proposta. Todavia, como Davi contou com as bênçãos
do profeta Samuel, Ana Júlia contava com o apoio de seus amigos estudantes, dos
professores, dos bispos e de inúmeras entidades que vêm denunciando o desmonte
da educação e das demais políticas públicas em nome da idolatria do mercado. Ninguém
tem dúvidas que o projeto do governo atual está profundamente inspirado no pior
do neoliberalismo: Estado pouco (ou nada) e Mercado muito. Um lema cuja inspiração
afronta a Constituição Brasileira, conforme Ana Júlia explicou aos seus Golias.
A menina, do alto dos seus 16, saiu abraçada depois
daquela aula de cidadania que emocionou a todos os brasileiros que ainda cantam
com Gonzaguinha aquela fé de Camões na juventude: “Eu ponho fé é na fé da
moçada/ Que não foge da fera, enfrenta o leão./ Eu vou à luta com essa
juventude./ Que não corre da raia a troco de nada.” Ana Júlia volta pra sua
escola, onde seus amigos estão acampados, varrendo as salas e lavando os
banheiros. A indesejada escola pública, esse depósito de pobres, esse asilo do
feio e do sem futuro, virou o que não devia, o que não se esperava, um lugar de
política, como outras vezes na história. E sendo assim, ela reverte o que os
governantes e as elites esperam dela: ao invés do silêncio obsequioso, a turma
da Ana Júlia preferiu falar. A sua voz precisa, urgentemente, ser ouvida, a
começar por envolver os estudantes na discussão das reformas propostas para a educação.
O ministro do Frota deveria deixar os confortos da corte
brasiliense para se encontrar com Davi no chão da escola.
Ao contrário de outros artistas, Michelangelo não representou
o seu Davi como um rei vitorioso, já celebrando o seu triunfo, mas como um corajoso
menino diante de seu verdugo: ele ainda não atirou a pedra, ele olha
indevassável o corpo membrudo do inimigo, ele reúne suas forças, ele planeja
sua luta. Diante dele está ainda aquele Golias que a todos amedrontava. Ele ainda
não derrotou o seu gigante. Tem um pouco de alarme em seu olhar. A voz está hesitante.
Mas para o Davi do Michelangelo, como para Ana Júlia e os seus, a luta só está
começando.
Bravo Jelson!
ResponderExcluirEm todos esses dias, ao menos a voz dessa menina se fez ouvir em meio a toda essa mídia tendenciosa e mancomunada com o poder.
Um momento de alegria e orgulho para quem ainda tem esperança de que a conta de tudo isso não seja paga por quem menos pode.
Obrigado pelo texto.
Caro Lean, de fato, uma luz no meio da noite. Obrigado pela mensagem. Um abraço.
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