SOBRE FATOS E CONVICÇÕES
Quem já leu o romance O nome da Rosa, de Umberto Eco, ou pelo menos já assistiu o filme dirigido
por Jean-Jacques Annaud, há de lembrar facilmente que um dos
principais argumentos da obra é a luta entre a convicção e os fatos. Com essas
duas ideias, Eco resume o conflito entre um modo pretensamente medieval de
pensar (tudo bem, ele recorre ao velho estereótipo!) e aquele que seria o
método moderno de acessar a verdade. Sete monges mortos em sete noites seguidas
naquela abadia de fim de mundo, cercada de infinitos mistérios: diante dos
acontecimentos, a convicção se utilizava dos argumentos disponíveis à época:
culpa do diabo, ação do demônio, algum tipo de castigo divino. Até que o frade
Guilherme de Baskerville e seu aprendiz, insatisfeitos com as convicções
corriqueiras, iniciam uma longa trajetória de investigação, reunindo evidências
e dando preferência aos fatos. Não demorou para serem envolvidos em uma trama
de medos e vinganças que se resume em torno do famoso livro que teria sido
escrito por Aristóteles a respeito do riso. A verdade vem à tona, na história,
não por meio de convicções, mas como resultado de uma investigação séria,
retilínea e dolorosa.
Convicção é artigo de fé. Ou você acredita ou você
reza para colocar o dedo na ferida um dia, como Tomé, que teve muita sorte de
encontrar o Salvador para tirar a prova dos nove. A maioria dos mortais não
teve. Fé não é ciência. Ciência, nos ensinaram os modernos, lida com fatos, ou
seja, recorre a normas e procedimentos metodológicos, à observação sistemática e
organizada, às evidências empíricas, a pesquisas de campo, à análise lógica de
causas e consequências, entre outras coisas. Na busca da verdade, os fatos
devem ser analisados com a força dos pormenores, com atenção aos detalhes e segundo
verificações constantes e reiteradas. A base desse tipo de metodologia, por
isso, conforme mostrou Descartes, é a dúvida metódica e a decomposição do
assunto em suas miudezas, às quais depois são ajuntados outros elementos até
que o pensamento possa alcançar um lugar satisfatório, onde a fé dá lugar a
elementos empíricos. Se à convicção basta o método dedutivo (ou seja, o sujeito
reunindo hipóteses em seu gabinete), a ciência dos fatos age pela indução (o
objeto é a principal fonte da verdade, ele induz o sujeito por meio de
evidências). Se à convicção basta a boa vontade, o anúncio de hipóteses e a ascensão
imediata de certezas, os fatos exigem parcimônia, verificação e, sobretudo,
resistência àquilo que Karl Popper chamou de princípio da falseabilidade:
diferente das convicções, que podem ser discutíveis, a verdade que nasce dos
fatos deve sobreviver ao teste do erro. É por isso que o cientista deve dar,
paradoxalmente, preferência ao erro, porque ao confrontar os fatos com sua
própria falsidade, a verdade sai fortalecida, caso as evidências derrotem o
erro. Simples assim: quanto mais uma verdade é confrontada com o seu oposto, a
mentira, mais ela se fortalece, caso seja mesmo verdade. Desde sempre,
portanto, os fatos precisam passar pela prova de fogo. E a convicção, ao
contrário, não gosta nem da dúvida nem do confronto.
O mundo jurídico se abasteceu dessa fonte para evitar
atropelos e impedir que inocentes fossem culpados de antemão. O assunto é tão
sério que virou uma espécie de dístico para o direito individual de cada um de
nós: ninguém pode ser considerado culpado até prova em contrário. Prova – ou seja,
fatos evidentes e não convicções. É óbvio que esse procedimento não oferece
todas as garantias contra a invalidade dos processos e nem sequer preserva a
justiça humana de equívocos infelizes, mas pelo menos ela oferece um caminho
mais seguro do que aquele da convicção, muito mais afeito aos erros e aos
deslizes.
A convicção, porque falha nas evidências empíricas,
associa-se facilmente à retórica. A linguagem performática é a melhor forma de convencimento
quando os fatos não estão de todo esclarecidos. Eufemismos, metáforas, idiossincrasias
e suposições recheiam o horizonte argumentativo de quem celebra uma verdade
nascida com antecedência, imposta como argumento no lugar dos fatos. Como professor,
já vi muito essa estratégia entre estudantes que não leram ou não compreenderam
um texto, mas, mesmo assim, precisam apresentar um seminário. Também nesses
casos, sobram Power points com
gráficos bastante convincentes – provavelmente nenhum é mais persuasivo, porque
fácil de ser lido, do que esse famigerado desenho em que um nome ou conceito é
colocado no centro e sobre ele desandam inúmeras setas acusatórias de todos os
lados. Qualquer mente menos preparada pode sair convencida da verdade de um
argumento desenhado assim – embora também permaneça inconfessavelmente bastante
desconfiada quanto a ele. Qualquer estudante de graduação conhece a pressa e a
retórica contidas nesse tipo de slide. A pressa, nesse caso, não é apenas
inimiga da perfeição, mas inimiga da verdade.
Nietzsche – como se sabe, um grande crítico das crenças
que dominam o modo de pensar e de organizar o mundo no Ocidente - escreveu que
a principal inimiga da verdade não era a mentira, mas a convicção. Isso porque
a convicção, porque é baseada em pré-conceitos, impede que a verdade apareça. A
verdade é um fruto maduro e deve ser colhido diretamente no pé. Um amigo meu,
quando criança, acreditava que macarrão dava em árvore. Enquanto permaneceu
convicto disso, não havia nenhum lugar para a verdade em seu coração. Porque é
um obstáculo à verdade, a convicção foi banida dos laboratórios como um
sentimento indesejável. Pena que ela continua grassando nos meios jurídicos para
o êxtase da mídia, embora também com o prejuízo da verdade que todos nós,
ansiosos, gostaríamos de conhecer. Quando ela toma o lugar dos fatos, nós
voltamos ao cenário medieval de Umberto Eco, antes da chegada de Sean Connery.
Convicção nos olhos do outro é refresco, mas, e se isso passa a se banalizar? meu estado de direito estará comprometido.
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