POR QUE "NOTÓRIO SABER" NÃO BASTA PARA SER PROFESSOR?
A
medida provisória do ensino médio publicada na semana passada, entre a
barbaridade da forma e o absurdo do conteúdo, trouxe à tona uma visão conservadora
de educação. Além de desvincular obrigatoriedades quanto ao que deve ser
ensinado do ponto de vista das disciplinas, abriu as portas da escola para que
pessoas sem preparação alguma, embora portadoras do famigerado “notório saber”
possam ser professores do que bem entenderem. Essa expressão é tão equivocada,
que fica difícil até decidir por onde começar. Pensemos em duas vias: primeiro
dando ênfase ao notório; depois, ao saber.
O problema do "notório"
Notório
é o que é sabido, reconhecido, público. Por isso, ele é um conceito de tipo relacional.
Depende sempre de um “juiz”: alguém reconhece outro alguém como portador de
notoriedade, algo que deveria ser também evidente e inegável. Notório, afinal,
é o que não pode ser contestado. Aumenta o problema se pensarmos que é algo
abstrato e impalpável que está em questão aqui: como saber se alguém é
detentor de notório saber? Foi para
preencher essa ineficácia que os sistemas inventaram os concursos: se é o saber
que está em questão, então para que alguém tenha notoriedade, precisa
demonstrar que sabe. Na origem da palavra, concurso
significa “correr junto”, estar no mesmo “curso”. Por isso, para fazer concurso,
os sistemas inventaram as áreas de formação, os conhecimentos necessários para
que o posto seja ocupado. O concurso parte de uma valorização do curso.
Se não houver concurso ninguém nunca jamais nenhuma vez de modo algum terá
notabilidade reconhecida. Primeiro equívoco da medida provisória.
Um
passo adiante e veremos que o tal notório
saber, assim, sem concurso, é, na linguagem popular, “gancho” ou “bico”,
uma prática muito comum na educação brasileira faz tempo. Já vi um caso em
que aulas de inglês eram ministradas pela dona do cartório do município, cujo
notório saber no domínio da língua advinha do fato de ela ter visitado a Disneylândia
com os filhos uma vez. Na sala de aula ela nunca saiu do verbo to be e nunca explicou (porque nunca
entendeu) o que Shakespeare queria mesmo dizer com o verso que virou chacota
entre os meninos da turma. Outra vez foi o dono da casa agropecuária que
assumiu as aulas de geografia, certamente porque tinha notoriedade em lidar com
pastos e paisagens. A professora de matemática era a contadora da cidade ou a
gerente do banco. A professora de português, com sorte, poderia ser a freira
que veio de fora e estava desempregada. Do contrário, a secretária do prefeito
assumiria o posto sem problema. Todos davam aula para completar a renda. Bico é
isso: gente sem concurso cujo notório saber vem não se sabe de onde, mas que,
em meio à precariedade, ganha em pompas. Em terra de cego quem tem um olho é
rei. Gancho é isso: biscate, trabalho extra, indicação, dedocracia. É trabalho
que não se dedica a fundo. Não vale a pena. Cheias de boas intenções, todas
essas pessoas contribuíram para que aqueles meninos e meninas não fossem nada
na vida. Pra que vela muita pra defunto pouco?
Daí
nasce o terceiro problema: notório saber é indicação política, apadrinhamento,
aos antigos moldes do coronelismo que ainda reina entre nós, amém. Quanto mais
ao interior do país a gente for, mais descobrimos que a ação educativa é
orientada pelos interesses do prefeito local em adequar os seus eleitores aos
cargos públicos. As escolas, muito facilmente, são preenchidas por pessoas a
quem os políticos municipais devem favores. Há toda uma rede de governo montada
sob a égide do favor, não da competência. Uma rede que vai do secretário de
educação à senhora que varre o pátio da escola, passando pelo professor, é
claro. Essa gente está lá, de favor, para defender o governo que lhe deu
emprego. Vivem de paparicar a primeira-dama, recolher “informações” e vasculhar
a vida alheia para saber quem apoia quem na próxima eleição.
O problema do "saber"
Mas
há algo ainda mais grave na Medida Provisória do ministro do Frota. Com a ideia
de “notório saber” ela reduz a educação, quando muito, à transmissão de saberes.
Ora, o problema da educação hoje em dia não é um problema apenas de saber. Faz tempo que o saber já não
habita mais apenas a escola. Basta ligar uma dessas maquinhas portáteis que a
gente carrega daqui para acolá, e um estudante pode acessar (e, com sorte, até mesmo aprender) o que quiser, de fazer bolo sem ovo, trança de raiz até o
conceito de liberdade em Kant. E pode, para isso, ter aula com um professor de
Harvard que explica muito melhor e sabe muito mais do assunto do que a gerente
do banco travestida de professora de matemática. Para que ir na escola? Por
isso, reduzida ao modelo da transmissão de conteúdo, a educação morre todo dia,
afetada pelo desinteresse e pela desmotivação. Professor falando no tablado,
passando tema no quadro, com plateia enfileirada em posição sonífera é a falência
mais grave da educação. E isso, não há notoriedade que salve! Não importa o que
o professor fale e quão notório seja o seu saber, o problema não é de conteúdo.
O problema que o presidento ilegítimo e o ministro do Frota não querem saber é
que o desafio central da educação em nossos dias é muito mais a metodologia, ou
seja, que é preciso tirar a centralidade do conteúdo (do saber), para que seja
também possível tirar o professor do centro do processo educativo e implementar
práticas pedagógicas ativas, que coloquem o estudante em contato direto com
problemas complexos e interessantes. Professor é mediador, não alto-falante, máquina
pulsante de informação, rádio transmissor. Para reformar a escola, não basta
mais apenas notório saber.
Por
isso, a principal saída para melhorar a educação é favorecer, ampliar e
incentivar a formação de professores. Os cursos de licenciatura, ao redor do
Brasil, não podem continuar sendo tratados como cursos de segundo nível. Professor
não é professor porque não sabe fazer, por isso ensina. Professor é alguém que
estuda o conteúdo, mas, sobretudo, as metodologias capazes de favorecer o
encontro do estudante com o conhecimento. Para que é pago um professor? Não é
para dar aula e nem para transmitir o seu saber, por mais notório que ele seja.
Professor é pago para que os estudantes aprendam. E para isso, ele precisa
estudar as melhores técnicas e procedimentos, que vão desde o uso do quadro,
linguagens e posturas, pitadas de psicologia, até o conhecimento de dinâmicas,
didáticas e afins, passando pelo uso de tecnologias educacionais de todo tipo
que hoje adentram a sala de aula. O principal desafio da educação hoje reside
nisso. O resto é gancho. Nosso problema, por isso, não é o saber, é o ensinar ou,
melhor ainda, é o aprender.
Não
entender isso é prova de que os que estão à frente das áreas estratégias do
governo atual estão lá por apadrinhamento, fazendo gancho. O governo que cortou
programas de alfabetização, cancelou verbas para as universidades, mandou
estudantes do “Ciência sem fronteiras” de volta pra casa, cancelou programas de
incentivo à formação docente, é o mesmo que publicou a túrbida medida
provisória. O que ele diz com isso? Que não entende nada de educação. E que faz
fumaça para confundir, quando não quer enfrentar o óbvio: educação de qualidade
passa pelo respeito e promoção aos professores, o que inclui investimentos em
cursos de licenciatura, carreira docente e qualidade de trabalho nas escolas.
Por essas e outras, mais do que nunca, ser
professor é resistir à onda de prevaricação e arbitrariedades que assola o
país. Avante.
Obrigado Jelson por mais essa excelente reflexão. Toda essa bancarrota por que passamos, me faz lembrar do filme IDIOCRACY, de Mike Judge. Só que agora, sem o riso nervoso de ter o aval de ser tratar apenas de uma "ficção", estamos bem além disso, na mais autêntica tragédia.
ResponderExcluirreflexão lúcida e necessária. Obrigada!
ResponderExcluirMuito obrigado Antônio. Nossa vida perece mesmo com esse filme. E com outros... de terror.
ResponderExcluirObrigado Sérgia.
ResponderExcluirNinguém é uma tabua rasa, portanto devemos considerar os saberes avindos também das experiências advindas com a maturidade, não com isso dizer que conhecimento não seja importante porém se vier elencado com maturidade é muito bem vindo, pois o que se tem observado é pessoas com "notório saber", mas que se mostram neófitas. E isso sim tem que ser reavaliado.
ResponderExcluirNobre colega Prof. Jelson Oliveira,
ResponderExcluir1- Quando o colega afirma que a MP irá permitir contratar sem concurso por "notório saber", qual foi o Art. que encontrou essa informação?
- A MP não fez qualquer alteração sobre a exigência de concurso. Ela mantém o inciso I do Art. 67 da LDB que assegura a exclusividade do concurso de provas e títulos como forma de ingresso. " I - ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos;" (LDB, 1996)
2- Quando o colega afirma que o notório saber será "indicação política, apadrinhamento, aos antigos moldes do coronelismo que ainda reina entre nós, amém.", qual foi o Art. que encontrou essa informação?
- A MP não fez qualquer alteração sobre a forma de reconhecimento de saberes. Ela mantém o parágrafo único do Art. 66 da LDB que assegura apenas as universidades reconhecer o notório saber. "Parágrafo único. O notório saber, reconhecido por universidade com curso de doutorado em área afim, poderá suprir a exigência de título acadêmico." (LDB, 1996)
3- Quando o colega afirma que nas disciplinas propedêuticas, as aulas poderão ser ministradas por não licenciados com notório saber, qual foi o Art. que encontrou essa informação?
- A alteração que a MP faz em relação ao "notório saber", restringe-se no inciso V do Art .36 e no inciso IV do Art. 61 da LDB apenas na formação técnica e profissional, ou seja, as licenciaturas não sofrem qualquer ataque. O notório saber terão alcance nas disciplinas do ensino técnico e profissionalizante, onde o bacharelado e o tecnólogo são as modalidades de formação desses profissionais em Educação. No entanto, em algumas profissões de formação prática (Pintor, Pedreiro, Soldador, Carpinteiro Naval, etc.) cujas áreas não existe formação superior, o critério do "notório saber" poderá ser reconhecido por Universidades. "Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos específicos, a serem definidos pelos sistemas de ensino, com ênfase nas seguintes áreas de conhecimento ou de atuação profissional: [...] V - formação técnica e profissional. [...] Art. 61. Consideram-se profissionais da educação escolar básica os que, nela estando em efetivo exercício e tendo sido formados em cursos reconhecidos, são: [...] IV - profissionais com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação para atender o disposto no inciso V do caput do art. 36."(LDB, 1996)
Referências:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Mpv/mpv746.htm#art1
Prezado Aureliano, há muito a dizer. Vou ser breve, contudo: [1] nem todos os profissionais da educação entram por concurso público como prevê a LDB (art. 67, inciso I) que você cita; ao contrário, há um grande percentual que tem contratos provisórios, ou seja, na prática, sem concurso; [2] o artigo 66 que você evoca trata apenas do ensino superior e não do ensino médio, como é o caso em questão; para dar aula no ensino médio não se faz necessário título de doutor, porquanto, a questão posta no artigo 66 não cabe aqui; [3] A nova MP não deixa claro o que você afirma sobre a limitação ao ensino técnico, embora o problema, mesmo aí, permaneça evidente quanto tratado com a generalidade, sem esclarecimento quanto ao seus limites. Por último, sabemos que entre a lei e a prática, há tanta distância como entre sistemas solares. Obrigado pelas informações, de qualquer forma. Ajudam a pensar.
ResponderExcluirPreciso acrescentar, por último, que mesmo que você tenha razão quanto ao "notório", permaneceria contrário à MP devido ao problema do "saber", que apontei no meu texto.
ResponderExcluirÉ...mais uma vez estamos diante de desafios que etremeçem as estruturas de profissionais que sozinhos tentam fazer o melhor que podem. Realmente trata-se de uma cortina de fumaça, porque ""o buraco é bem mais acima". A corda sempre arrebenta do lado mais fraco. Mas Deus está do lado dos justos. Sim resistamos a mais um ataque...o caos traz mudanças e estamos atravessando por ele.
ResponderExcluirÉ...mais uma vez estamos diante de desafios que etremeçem as estruturas de profissionais que sozinhos tentam fazer o melhor que podem. Realmente trata-se de uma cortina de fumaça, porque ""o buraco é bem mais acima". A corda sempre arrebenta do lado mais fraco. Mas Deus está do lado dos justos. Sim resistamos a mais um ataque...o caos traz mudanças e estamos atravessando por ele.
ResponderExcluirBoa tarde meu prezado Joelson Oliveira. Parabéns pela explanação acerca do que de fato está acontecendo na educação básica do nosso país. Estou escrevendo uma discertação e procuro alguma referencia de (notório saber) no ensino fundamental e médio da Educação Básica. Achei seu comentário acima muito pertinente.
ResponderExcluir"Na origem da palavra, concurso significa “correr junto”, estar no mesmo “curso”. Por isso, para fazer concurso, os sistemas inventaram as áreas de formação"... FRANCAMENTE, eu nao creio que pessoas estejam no mesmo "curso"por possuirem a mesma formação academica, pois uma coisa é passar por uma instituição de ensino e obter diploma; outra coisa porém, é deter conhecimento: o nótorio saber de fato.
ResponderExcluir"Na origem da palavra, concurso significa “correr junto”, estar no mesmo “curso”. Por isso, para fazer concurso, os sistemas inventaram as áreas de formação"... FRANCAMENTE, eu nao creio que pessoas estejam no mesmo "curso"por possuirem a mesma formação academica, pois uma coisa é passar por uma instituição de ensino e obter diploma; outra coisa porém, é deter conhecimento: o nótorio saber de fato.
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