SOBRE O VALOR DA VISITA






Em época de campanha, vejo candidatos deixando seus gabinetes refrigerados para visitar o povo do qual depende o seu futuro. Muitas vezes, certamente pela falta de costume, muita coisa dá errada e eles nos brindam com cenas que vão do ridículo ao hilário. Fiquei pensando sobre o valor da visita na nossa cultura e sobre como visitar é um costume enfraquecido no mundo contemporâneo, embora a tecnologia tenha usado metáforas como visita ou navegação para descrever a interação do mundo virtual.  
Na minha infância, a notícia chegava pela boca de um irmão mais novo, enquanto a gente chegava da escola: “tem visita em casa!”. Pronto. Mundos ruíam. Perdia-se o rumo, ainda mais quando o visitante não era conhecido. No geral, a timidez obrigava a gente a entrar pela porta dos fundos, apagando os próprios rastros com um silêncio sepulcral e uma invisibilidade quase sempre ineficaz. Onde eu vivo, em Curitiba, somos famosos por procrastinar as visitas o quanto podemos, por meio de sempre renovadas promessas: “uma hora a gente combina”, “precisamos nos ver”, “me liga hein?!”- e nada. Passam-se anos. Coisas do mundo urbano, onde a visita passou a exigir hora marcada em agenda com máxima antecedência. Não basta – e não pode – mais simplesmente chegar. Estamos na época em que visita, só com convite. O mundo moderno transformou a cidade em lugar de medo e por isso desaconselha a primeira e evita, o quanto pode, a segunda. Afinal, ninguém quer ser incomodado nas horas poucas que tem para ficar em casa. Zeca Pagodinho tem razão em mudar as normas da casa, em dia de pagode, essa instituição nacional: “quem não for amigo, só entra de crachá”, diz a letra do samba, “da próxima vez, quem quiser me visitar, avisa”. Também, não custa, né?!
Visitar é entrar na habitação de alguém. Isto significa: reconhecer o outro em sua identidade própria. Partilhar as suas alegrias e, não raro, conhecer os seus problemas. Visitar é con-viver. A Bíblia, por exemplo, está cheia dessa simbologia. Maria foi visitada por um anjo, que lhe inculcou no ventre o salvador. Depois, barriga à mostra, tomou seu jumento e foi visitar Isabel. Dando-se crédito ao evangelista, foi uma festa. Até os meninos se mexeram no ventre das duas primas. Talvez por isso, Jesus tenha aprendido com a mãe a fazer visitas. Teria entrado em doze casas durante seu tempo na terra. Aprendemos com essas histórias que visita não é inspeção e não é comércio. Visita é entrega, gratuidade, afeto.
O nosso, é um tempo de errâncias – e não de visitas. Desde quando Pascal escreveu sobre o pavor do homem diante da imensidão do universo silencioso e, depois, Nietzsche celebrou a condição de andarilho como característica do espírito livre, esse problema serviu de base para a compreensão da condição espiritual de nossa época: todos estamos fora de casa. Albert Camus nos falou do estrangeiro e Sartre descreveu a náusea de estar aí, no meio do mundo, tendo de decidir para que lado seguir. Uma decisão que Beckett parece não ter assumido, no seu Esperando Godot: ali, naquela encruzilhada, ao relento, entre palavras desconexas, todos nós estamos esperando uma visita, embora não saibamos quem ou por que.
Se a estrada nos torna viajantes, a casa nos faz visitantes. A casa é o lugar da segurança diante do inesperado. O lugar onde são gestadas as identidades e as várias formas de relação. Casa é lugar de intimidade, mas é também lugar político: Gilberto Freyre contou como nos tornamos brasileiros a partir da Casa grande e, de seu complemento escravagista, a senzala. Aí estão as raízes do Brasil, que gente como Jorge Amado, José Lins do Rego e Raduan Nassar souberam transformar em conteúdo de uma literatura maiúscula. A casa para o estrangeiro que chega; a falta de casa para o escravo que foi obrigado a chegar; a casa comum do indígena que não chegou, porque já estava. O Brasil é um país fundado sob o signo da viagem, um país de viajantes – inclusive aqueles, no pior sentido, que permanecem como exploradores, sertanistas de várias pátrias. Aí, no meio do espaço aberto, a vida doméstica funda o encontro de gentes em meio à dispersão das fazendas, das longas distâncias, do horizonte reto, do grande sertão sem fim. Em Buriti, Guimarães Rosa falou da casa como “uma fortaleza, sumida no não-ser”, mas onde “Deus entrava pelas frinchas”- Deus, essa presença enigmática, essa tendência centrípeta das experiências misteriosas da imensidão da noite e todos os seus desconhecidos medos. Deus, essa metáfora da casa. Casa, esse lugar do aconchego onde recebemos, com o melhor, aquele que chega em visita. E isso nem sempre inclui o candidato e seus santinhos, que não sabem nada ainda da arte de visitar seu povo.
Há muitos tipos de visitas. Gosto de todos. Quando viajo, por exemplo, gosto de visitar mortos, não só nos cemitérios, mas, principalmente nessas casas-museus, onde filósofos forjaram seus pensamentos; escritores passaram noites em claro, entre as dores e a escrita; escultores poliram a pedra de seu próprio destino; pintores recriaram a imagem do mundo que desejavam para si. Gosto de entrar na intimidade de um quarto, reparar a ordem dos talheres no jantar que não terminou ou bisbilhotar a privacidade estranha de uma latrina. Assim, vou aprendendo que essa gente forjou sua arte sendo apenas... gente, entre panelas, lençóis, temperos e outros utensílios de uma vida prosaica. Aprendo com a visita. Vou embora refeito de muitas verdades, entre as quais aquela de Fenando Pessoa, ao olhar a casa defronte à sua e concluir: “que grande felicidade não ser eu!”



Como você veio visitar o meu Blog, vou mostrar algumas fotos que eu tirei nessas experiências. Tem um tempinho ainda?


Casa de Anne Frank em Amsterdã



Casa de Handel em Londres.


Casa de Jimi Hendrix, no mesmo prédio do Handel.

Casa de Jean-Jacques Rousseau, em Montmorency, França


Casa de Charles Dickens, em Londres.


Casa de Fiódor Dostoiévski, em São Petesburgo.

Casa de Léon Tolstoi, em Moscou.

Casa de Rembrandt, em Amsterdam.

Casa de Freud, em Londres



Casa de Vitor Hugo, na Place des Voges, em Paris



















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