O POMPIDOU DE PARIS É UMA CAVERNA PLATÔNICA: sobre as ilusões de Magritte*









A exposição organizada por Didier Ottinger, no Centre Georges Pompidou, em Paris, dá prova não só da incontornável grandiosidade estética da obra de René Magritte, mas sobretudo de seu conteúdo filosófico e de sua poética ao mesmo tempo incômoda e fascinante. Poucos pintores foram tão enigmáticos como ele. Quem visita as cinco salas da exposição sai de alma sangrada, porque adentra no mundo surreal do pintor belga e o acompanha aos seus abismos mais profundos, onde somos deixados sozinhos. Se a traição das imagens é o título da exposição, somos nós os traídos. Depois de ter nos induzido à aventura, Magritte nos deixa perdidos nos labirintos de seu mundo de sombras e ilusões.
Isso porque, desde seu encontro com o quadro Chant d’amour, de Giorgio Chirico, em 1923, Magritte dedicou-se a pensar com imagens e, sobretudo, a mostrar o quanto o pensamento é limitado e o quanto palavra e imagem, malgrado suas similaridades, falham em dizer e em mostrar o mundo. A estética do choque de Chirico fez Magritte despertar para aquele que seria o problema central de sua obra. O mundo de Magritte parece mesmo inacessível em si mesmo, o que lhe empurra para as fronteiras do nonsense, do indecifrável, do inexprimível e, às vezes, do incompreensível. O que se vê nunca é o que se presume verdadeiro porque esse é o seu jeito de dizer que nós somos adoradores de bezerros de ouro, cuja veneração, como na Bíblia, impede o acesso ao sagrado – de um deus ou de um mundo.
Deposta sobre o quadro de Magritte, algumas vezes a palavra diz a coisa sem imagem, em outras a imagem diz o que a coisa não é, em outras ainda, o título da obra soma-se ao enigma para exprimir algo que não está nem na imagem, nem na palavra. O enigma se torna, aos poucos, uma soma de significâncias não significantes que eu gostaria de chamar, impudicamente, de “aula de filosofia”, pensando na essência mesmo do pensar, que é escavar o real na sua sombra, entre as cortinas entreabertas, a maçã, o chapéu, o mar e o céu – ah... sobretudo o céu, ali, desmontado de suas divindades.
Boa parte dessa experiência à qual Magritte submeteu a sua arte e à qual ele agora nos sujeita, vem do seu envolvimento com os surrealistas franceses, especialmente o grupo de André Breton. Outra parte, contudo, vem das suas referências filosóficas, que incluem a História natural de Plínio, O Velho (o relato da invenção da pintura por Dibutades de Sicyone, que queria socorrer a própria filha da saudade do amante que partira para uma grande viagem, é uma forte influência para Magritte); a alegoria da caverna de Platão e suas lições de representação e simulacro; filósofos contemporâneos como Alphonse de Waehlens (professor da Universidade de Louvain, tradutor e especialista em Heidegger, Husserl e Merleau-Ponty) e Chaïm Perelman (fundador da nova retórica); mas também o próprio Merleau-Ponty e, sobretudo, Michel Foucault, cujo livro As palavras e as coisas (1966), serviu a Magritte tanto como provocação quanto como sumário de sua própria obra. Com Foucault, Magritte partilhou a crítica à linguagem em sua relação com a realidade, recuperando o debate medieval em torno dos universais e recolocando a pergunta sobre o poder da palavra na sua relação com o mundo. Como se sabe, a correspondência entre ambos motivou a publicação da homenagem póstuma de Foucault ao pintor, no livro Ceci n'est pas une pipe, de 1973.
No Pompidou, entre tantas obras, tive uma alegria especial diante de A condição humana, de 1935, que faz parte da série sobre a alegoria da caverna de Platão, que enche toda uma sala. A ilustração que me sequestrou é uma das poucas nas quais Magritte trata explicitamente do teatro das sombras como falsa representação do mundo, substituído pelo cavalete na entrada de uma gruta, no qual encontra-se uma tela sobre a qual se projeta uma ilusão realista estonteante. Não se sabe onde começa o mundo, onde termina a caverna, onde começa a pintura. Estamos vesgos à procura do esquadro que dilui a imagem e o mundo, ao mesmo tempo que os aproxima e emenda. Pintura e mundo diluem-se diante do olho do pintor. O pintor, ele mesmo, está preso no mundo da caverna, como um escravo da imagem. Ele olha de dentro para fora. Entre ele e o mundo, está a tela a ser pintada. Na tela, o que se vê, é o mundo projetado pela ilusão do prisioneiro que olha para fora cheio de esperança mas, também, consciente da traição da imagen. Como na história de Platão, o pintor quer se libertar da caverna, pintando. Quer sair do escuro e seguir a luz prometida na luminosidade da tinta que é seu material. Ele, contudo, não alcança êxito. Não há mundo real acessível ao olho humano. O pintor é, ele mesmo, um traidor. Promete o que não pode cumprir.
Em Magritte, a pintura imita o pensamento e o pintor se investe de filósofo. Ou, pensando bem, em Magritte o pintor expõe o ridículo do filósofo que, perdido no âmbito dos discursos, acredita na palavra como curativo para as suas feridas. No pintor, o filósofo sangra toda a sua tinta. A gente, sedento, posiciona-se à beira do precipício da tela, sob a chuva, para vislumbrar o espetáculo de nosso próprio suicídio. O que está visível é a desconfiguração completa do que nós somos e do mundo no qual vivemos. Com Nietzsche, com quem Magritte também flertou, a gente aprende que “aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro”, porque, afinal, “quando você olha demoradamente para um abismo, o abismo também olha de volta para você”. Ver Magritte numa sala do Pompidou é contemplar o perigo na forma do abismo que cresce para dentro de nós mesmos. Ver Magritte é como entrar de novo na caverna, depois de tantos anos de luz, meio como voltar ao útero e ver de dentro o nosso próprio parto, tudo ao avesso. Ver Magritte é, literalmente, ficar sem chão.

* Não, ceci n'est pas la verité.

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Um pouco mais do que vi (as fotos estavam permitidas):

Carta de Margritte a Foucault
Carta de Margritte a Foucault


Exemplar do livro de Foucault pertencente a Margitte





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