O MACHO NACIONAL E A CULTURA DO ESTUPRO






Na mesma semana em que o ministro (interino) da educação escolheu como seu conselheiro-mor um ator pornô, cujo discurso e cujos atos representam uma temível faceta do homem nacional, na mesma semana, uma jovem de 16 anos foi estuprada por trinta rapazes no Rio de Janeiro. Sim, o ator, disse o ministro, é um homem normal, comum. E a autoridade não tem “preconceito”. Muitos pensaram o mesmo em relação aos trinta do Rio. Os trinta do Rio pensaram o mesmo de si próprios.
Ao receber o ator, o ministro legitimou o personagem, com direito a selfie e tudo. O ministro fez do ator um cidadão comum, um homem “de bem”. Aprovou suas práticas, acolheu suas ideias. Simbolicamente, imputou-lhe valor. Talvez o ministro não tenha se dado conta, mas o ato é uma espécie de recado à sociedade. Ao receber o ator, o ministro fez o mesmo que aquela plateia que o aplaudiu em rede nacional, enquanto ele contava, em detalhes, como estuprou uma mãe-de-santo - finalmente, é o mesmo homem. Os gestos e o palavrório é de dar vômito. O riso frouxo dos espectadores e os incentivos do apresentador em busca desesperada de audiência, amorteceram a gravidade dos fatos. Ao que parece, ninguém se incomodava. Além do interesse hipertrofiado pelo sexo travestido em pornografia (coisa que nos afeta sobremaneira), o relato é corriqueiro, não há dúvida. Muitos machos brasileiros se reconhecem prontamente – sem nenhum pudor - na narrativa da cópula do Frota: “fiquei olhando aquele bundão, falei pô, vou comer”, “ela não falou nada, eu falei: vou pegar”, “aí virei, botei a mãe-de-santo de quatro”, “garrei ela pela nunca”, “comecei a sapecar”, “fiz tanta pressão na nuca da mulher que ela dormiu” etc. etc. etc. Não precisamos de muito para identificar o ritual falocêntrico que objetifica a mulher e que acentua o ideal do homem-garanhão e pegador. Qualquer uma das frases do Frota pode ser facilmente ouvida no ponto de ônibus, no corredor da universidade, na roda da cerveja, no bar, no elevador, na rua. É parte do cotidiano masculino. Coisa de homem. Porção de nossas cegueiras. Coisa banal. Problema nenhum. É parte do jogo. Homem é assim. Mulher é assado. Reclamar disso te faz um moralista, um xiita.
O palavrório a gente aprende desde pequeno. Do berço, o homem nacional (que talvez não seja só brasileiro, eu concedo) aprende que pode tudo. A mãe lhe serve, a irmã lhe assiste. Está tudo a seu favor. No geral, criamos nossos meninos para esse jogo de hierarquias, para seguirem as mesmas regras, sob o risco de serem vítimas de outros preconceitos. No informe do Frota, o macho nacional toma as iniciativas, usa e abusa, soberano. A mulher não fala, não sente, não tem prazer nenhum, desmaia durante o ato, como é próprio daquilo que é só uma coisa. Ela não tem escolha. Agacha-se no meio da sala como um objeto de prazer. Não consente, não tem chance de recusar. Alguns dirão, com a venda do preconceito nos olhos, que ela até gostou. Que ela mereceu. Que ela procurou. Que ela... (A menina do Rio também desmaiou, também não assentiu, também...)
As cenas do Frota (a que ele descreve e as que ele encena) não assustam a plateia porque elas se reproduzem com uma banalidade ululante em todos os cotidianos. Os dados estão aí. Nem ele, nem os trinta do Rio, parecem reconhecer a gravidade de seus atos. Nas redes sociais, os meninos contam vantagem. Celebram a própria barbárie. No gabinete do ministro, o ator pousa de bom mocinho. Na avenida, lutou contra a corrupção e todos os outros vícios, ao lado dos pastores moralistas da Bancada da Bíblia. Tudo normal. Coisa banal. Problema nenhum. Faz parte do jogo. Homem é assim. Mulher é assado. (Aliás, é bom lembrar, tiraram a mulher e não colocaram nenhuma no primeiro escalão do governo: o ministro segue a mesma lógica do presidente interino; até agora, tudo como programado).
O culpado pelo estupro da moça carioca é o macho nacional. Esse estereótipo machista que formula e repete nossas piadas sexistas, nossas propagandas de cerveja, nossas mensagens nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp. Ele está sentado nas nossas mesas, frequenta nossas igrejas, vai nas nossas festas, joga bola conosco, vive dentro de nós. Seus pequenos gestos são sementes de crimes, potenciais da violência, incentivo miúdo da perversidade. É ele que nós precisamos denunciar primeiro. É ele que nós precisamos eliminar, com um esforço diligente e cotidiano.
E por fim, precisamos reconhecer que o macho nacional é um grande frustrado – alguém que o avise, por favor! Não precisamos de muita psicologia para adivinhar seus desgostos. O macho nacional não sabe transar, por isso estupra; e nem sequer experimentou o que é o amor, que é troca, por isso objetifica. Gaba-se do que lhe falta. Espalha seus sucessos como forma de disfarçar seus próprios desequilíbrios. É essa frustração que está implícita em suas atitudes cotidianas. Ele ainda não descobriu que enquanto o sexo for só para ele, imposto e não consensual, ele não será o que deve ser: uma experiência de prazer, de carinho e, sobretudo, de encontro.



Comentários

  1. O seu texto é maravilhoso. Sobre os autores desse estereótipo masculino, muitas vezes apoiados até por 'mulheres', as palavras me faltam.

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  2. professor! devemos lutar contra isso sempre!

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  3. Jelson, mais uma vez, somos , confrontados com a barbárie. Embora, infelizmente, fatos como esse não aconteçam só no Brasil, o fato de ter acontecido nesse momento e nessas circunstâncias (30 de uma vez) é no mínimo sintomático: os homens podem tudo, contra as mulheres! E, depois dos últimos acontecimentos políticos, mais ainda e com as bênçãos do Congresso Nacional! É uma vergonha só! Violência institucionalizada! O estupro e o golpe: duas faces da mesma moeda forjada no mesmo cadinho: o da impunidade!

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  4. Jelson, mais uma vez, somos , confrontados com a barbárie. Embora, infelizmente, fatos como esse não aconteçam só no Brasil, o fato de ter acontecido nesse momento e nessas circunstâncias (30 de uma vez) é no mínimo sintomático: os homens podem tudo, contra as mulheres! E, depois dos últimos acontecimentos políticos, mais ainda e com as bênçãos do Congresso Nacional! É uma vergonha só! Violência institucionalizada! O estupro e o golpe: duas faces da mesma moeda forjada no mesmo cadinho: o da impunidade!

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  5. Parabéns pela maneira clara e de fácil assimilação com que você trata esse assunto. Usei e compartilhei seu texto.

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