CANCELARAM A BOLSA-FAMÍLIA DA D. ISABEL. A "herança maldita" do país é a miséria de sua gente.
A senhora chegou revoltada no escritório
do CRAS (Centro de Referência da Assistência Social). Veio a pé, sol a pino. Vestida
de pobreza. Filhos ranhosos a tiracolo. Trazia na voz todas as formas de cansaço.
E nos erros de gramática, todo o analfabetismo, a falta de oportunidades, os
calos do trabalho que lhe proibiu a escola, os vícios do marido, quem sabe
até a violência doméstica. Em seus gestos, a história da escravidão negra, as
muitas cercas da fome, os horizontes fechados pela dureza do cotidiano. Embora sua
revolta não estivesse bem conjugada verbalmente e seus plurais não refletissem
nenhum padrão linguístico - mesmo assim - ela fora compreendida. O direito ali reclamado
parecia essencial, imprescindível, indispensável. Quem ouvisse os impropérios, não
deixaria de se emocionar e não teria dúvidas sobre a necessidade vital que
envolvia o benefício adquirido e agora, sem mais, cancelado: cortaram-lhe a
bolsa família!
Vou logo esclarecer: Dona Isabel
não vive só disso. Ela trabalha, de sol a sol, todos os dias, em casa de
estranhos. Seu marido vive longas jornadas longe da família, trabalhando como
peão nas fazendas da região. Se bem descrita, a sua situação se enquadraria nas
novas formas de escravidão, frequentes naqueles ermos do país. O filho mais
velho vende leite de casa em casa, todas as manhãs. Os outros dois menores, de
vez em quando, voltam para casa sorridentes, carregando pedaços de ossos doados
pelo açougueiro para a sopa. Não. Ninguém naquela casa merece as alcunhas
afrontosas que recebem todos os dias, aqui e ali, até de gente bem-intencionada.
Não. Ninguém naquela casa é vagabundo, desocupado, indolente. Ninguém lá vive
só da bolsa-pobreza. Ninguém lá espera tudo de mão beijada. Ninguém lá vive de
benesses ou de favores, nem de saldos dos privilégios, nem de desvios, maroscas
ou tramoias contra o erário público, contas na Suíça, conluio com empreiteiras,
favorecimentos. Não. Nada. Ninguém. Naquela casa moram as vítimas desses
crimes. E sim, todos os meninos vão à escola, como prevê o programa.
Dona Isabel, contudo, precisa do
dinheiro do governo. Precisamos ser práticos. É um leite que falta, um trocado
para a mistura, um complemento para o gás ou para a conta da luz. Sem o
dinheiro para saldar as dívidas do mês, o moço do mercado não vai vender mais
fiado. A vida, já tão sofrível, ficará pior. Dona Isabel não se conforma. Talvez
ela não saiba que o programa social, do qual ela depende, custa tão pouco diante
dos outros benefícios pagos pela União aos empresários, usineiros, banqueiros e aos próprios deputados que agora cortam os seus direitos – uma tal consciência
talvez multiplicasse sua revolta e Dona Isabel sucumbiria em seu próprio
desespero. Pensando bem, melhor que ela não saiba disso...
A psicóloga do CRAS (a quem devo
esse relato e que, por acaso, é minha irmã), enquanto ouve os soluços de D. Isabel,
pergunta de quanto era a verba perdida, motivo de tanta indignação. Sem
titubear e sem nenhuma censura na voz, Dona Isabel declara, em bom português:
trinta e sete reais! O que para muitos é o valor de um café, a gorjeta do garçom,
o troco que fica com o taxista, para Dona Isabel era uma vida inteira. Quanto custou
o vinho do deputado no exterior? Quanto, aquela viagem com a família, a
hospedagem no hotel cinco estrelas, a joia, o aluguel dos carros? Quanto?
Ninguém que bateu panela e tirou
foto de verde e amarelo ao lado do Bolsonaro, deve conhecer a Dona Isabel. Não sabem
que o valor básico mensal médio do bolsa família é algo em torno de R$ 77,00 e
que uma mulher grávida pobre recebe, por nove meses, R$ 35,00! E que uma família
pobre pode receber R$ 35,00 por filho com idade de até quinze anos, com limite
de cinco por família. Que os meninos da Dona Isabel receberam R$ 35,00 mensais
durante seis meses – esse foi o custo da sobrevivência de três vidas daquela
família! Não. Ninguém sabe. Ninguém quer saber. Ninguém se preocupa com Dona Isabel
e com o fim dos programas sociais que agora são anunciados como responsáveis
pela crise econômica nacional, uma “herança maldita” que o interino recebeu da
presidente golpeada e de seu antecessor.
O que é maldito na herança nacional
é a miséria e a falta de oportunidades de Dona Isabel. É o fim dos programas que
poderiam dar a seus filhos um futuro diferente do seu. O que é maldito na herança
nacional é a ignorância daqueles que lutam pelos próprios privilégios e, sem
pudor, condenam milhões de famílias à fome, à falta de casa, de terra, de
cultura, de educação de qualidade. Maldito é o silêncio de quem vê o
país ser tomado pelo que há de pior na política nacional, sob a vênia da
retomada de um crescimento econômico que exclui gente como Dona Isabel. Quem
vai bater panela em favor dela e de seus filhos?
PS. Sobre esse assunto, indico o livro “Vozes do Bolsa
Família, Autonomia, dinheiro e cidadania”, de Alessandro Pinzani e Walquiria
Leão Rego, que analisa dez anos desse que é o maior programa de combate à
pobreza no mundo e cujos beneficiários são, na sua maioria, mulheres como Dona
Isabel.
Prezado prof.Jelson
ResponderExcluirParabéns, bela reflexão....
refletindo o ciclo de miséria que a princesa Isabel tentou libertar para as próximas gerações de D. Isabel e parece que a corrente não abriu seus grilhoes
Abraço
Prezado prof.Jelson
ResponderExcluirParabéns, bela reflexão....
refletindo o ciclo de miséria que a princesa Isabel tentou libertar para as próximas gerações de D. Isabel e parece que a corrente não abriu seus grilhoes
Abraço
Prezado prof.Jelson
ResponderExcluirParabéns, bela reflexão....
refletindo o ciclo de miséria que a princesa Isabel tentou libertar para as próximas gerações de D. Isabel e parece que a corrente não abriu seus grilhoes
Abraço
Prezado Jelson, muito obrigado pela bela reflexão, pessoas como você é que faltam nesse país, no qual esquecemos dos outros e apenas pensamos em nosso próprio umbigo.Obrigado.
ResponderExcluirO que o Bolsonaro tem a ver com isso?
ResponderExcluirTá brincando com esta pergunta?
ExcluirTá brincando com esta pergunta?
ExcluirSim, Lucia, deve ser brincadeira.
ResponderExcluirObrigado Luciane e Rita. Parece que não estamos vendo o óbvio.
ResponderExcluirJelson, que alegria te reencontrar. Como admiro sua capacidade de olhar para o próximo. Paz e bem!
ResponderExcluirJelson, que alegria te reencontrar. Como admiro sua capacidade de olhar para o próximo. Paz e bem!
ResponderExcluirRegina, a alegria é minha. Um abraço com saudade.
ResponderExcluirJelson, obrigado por mais essa reflexão. É sempre uma satisfação ler os seus textos, por mais que às vezes a garganta saia embargada.
ResponderExcluirO triste é imaginar que muitos que bateram panelas e ainda bradam seu chavões por aí, por mais que acordassem e vissem o quão mínima e insignificante é a contribuição do governo diante de toda a falcatrua que assola este país, ainda assim continuariam com seus Bolsonaros, Cunhas e Temers, virando as costas por pura conveniência, ganância e individualismo.
Forte abraço
Isso aí Lean! Interesses malditos guiam a nação.
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