ACORDAR É DIZER: “EU SOU”, “ESTOU AQUI”, “É AGORA”
Enquanto
sonhava com o namorado morto e deitava-se na neve branca, beijando pela última
vez o seu lábio frio, o personagem de Colin Firth no filme de Tom Ford, A sigle man, título do livro homônimo de Christopher
Isherwood, acorda de súbito. A tinta preta derramada sobre o lençol
branco se estende sobre os lábios trazida pelas mãos que queriam sentir a
memória do beijo, enquanto o personagem confessa que a tragédia da morte do
amante tem tornado o ato de levantar, uma experiência terrível. Muitos de nós
sabemos do que se trata. Enquanto põe os pés no chão e se dá conta de quem é, enquanto
deixa a água do banho cair sobre o corpo derreado, enquanto toma coragem para
sair, lentamente, e enquanto espera a própria morte, o professor George
Falconer retrata muitos de nossos dramas cotidianos.
A
primeira frase do filme traduz o susto de acordar, a consciência de que o sonho
era mesmo só um sonho e que a vida, aqui do outro lado, é o peso da falta da
pessoa amada, a ferida aberta de uma tragédia, o luto eterno, a vontade de
nada, a agonia, um inverno por dentro, fobias sem fim: “acordar é dizer ‘eu sou’,
‘agora’”. Esse súbito de consciência diante da morte do outro se alonga, para
Falconer, no planejamento da própria morte, diante de uma vida sem sentido. O filme
inteiro é esse planejamento que o livro contou como uma tragédia imprevista de
amor – inesperadas como todas as tragédias e surpreendentes como todos os
amores. O filme é a história de uma ausência. Mas sobretudo, o filme é o relato
de uma angústia.
Feridas
abertas de nossas próprias tragédias sangram todas as manhãs. Dizer “eu sou” é
tomar parte delas, assumi-las como próprias, digeri-las com dificuldade, lentamente.
E às vezes sofrer de dispepsia. Dizer “eu sou” é o ato primeiro da filosofia
que, segundo Heidegger, nasce da consciência da morte. O homem é o ser que se
distingue de todos os outros porque sabe que vai morrer. Significa: sabe-se
morto já, embora estando vivo. Por isso, existir é, para o homem, viver angustiado.
Vendo a morte do outro, nessa co-presença de mundos, o homem sabe da sua. E sabendo-se
para-a-morte, ele a experimenta na vida que é sua e, indiretamente, na morte
que é do outro. Diante dessa angústia, somos tirados de nossos afazeres
cotidianos. Depois de sabê-lo, nada mais importa. Todas as possibilidades do
dia que começa ganham novos contornos. A morte torna a experiência da vida
algo que nos singulariza e autentica, diante da correria do dia-a-dia. Não
fosse a morte, o professor Falconer teria acordado correndo, atrasado, cheio de
compromissos. Não teria tomado café, nem ouvido música, nem aguado as flores. Não
teria cumprimentado a faxineira e nem dado atenção aos vizinhos da rua. Teria guiado
seu carro até o emprego, teria despejado suas verdades aos alunos, teria... Mas
não: a morte lhe impôs outra obrigação. Foi necessário reavaliar todos os atos.
Todo mínimo gesto teve de ser repensado. A morte faz isso conosco, ela costuma
nos tirar do barulho. E nos jogar contra nós mesmos, como forma de teste.
Sartre,
no seu romance O muro, fez Pablo
confessar que, embora não pudesse pensar claramente na própria morte, “a via
por todos os lados, sobre as coisas, no jeito pelo qual as coisas tinham se
recuado e se conservado à distância, discretamente, como pessoas que sussurram
à cabeceira do moribundo". A morte estava em todos os lugares e seu hálito
umedecia todos os planos diários, as agendas em cima das mesas, os teclados, os
e-mails não respondidos, as obrigações, as normas e os compromissos. Tudo o que
é cheio de futuro está ungido pela morte.
O susto de acordar é o mesmo de dar-se conta
dessa realidade. Dizer “agora” é formular a interrogação: e agora, que “eu sou”
um ser que sabe que morre, e agora que estou aqui, e agora que sou o que sou, e
agora que já é hora, e agora que é agora... “e agora José?” Todas as nossas
tragédias não são fáceis. Cada um tem a sua em ferida exangue. Uns mais, outros
menos. O que a filosofia nos ensina – pelo menos uma parte dela – é que
precisamos da morte como experiência heurística, ou seja, como um prévio aprendizado:
saber que vai morrer deve nos empurrar para o “agora”, para os valores do
agora, para o que é o agora, para as alegrias do presente. Com seu livro, Christopher
Isherwood nos ensinou a mais significativa e emocionante das obviedades: a vida
é um ato de resistência contra a morte. Seu valor depende da disposição de
acordar e, diante do susto, simplesmente dizer: “eu sou”, “estou aqui”, “é
agora”. E seguir em frente.
Schopenhauer escreveu que "toda noite ficamos mais pobres de um dia". Isherwood nos ensina que a cada manhã, ficamos mais ricos de nós mesmos.
Schopenhauer escreveu que "toda noite ficamos mais pobres de um dia". Isherwood nos ensina que a cada manhã, ficamos mais ricos de nós mesmos.
Professor suas palavras são a manifestação de uma verdade oculta para boa parte da humanidade . No dia 03/06/2007 fui esfaqueado e tendo a oportunidade de ver a morte face a face , fui apreendendo a dar valor a simplicidade da Vida .. Sim a experiência de Morte me transformou em um Ser Humano que enxerga aquilo que foi ofuscado com o passar dos anos . Bom texto e Saudades de suas Aulas.
ResponderExcluirRodrigo Vareli
Seminarista Salvatoriano .
Nós seres humanos temos uma tendência natural a cair na rotina cotidiana, reclamar do que não tem e esquecer o valor da vida, a qual só percebe quando ameaçada.
ResponderExcluirRodrigo, isso mesmo! Fique bem.
ResponderExcluirDaniel, a vida é constantemente ameaçada. A gente é que esquece disso - ou finge esquecer.
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