SOBRE A TÉCNICA DAS GUERRAS E O DILEMA ÉTICO DOS DRONES
O novo filme de Gavin Hood estreou essa semana na
Inglaterra, com a sempre deslumbrante Helen Mirren, corajosamente grisalha como
nunca. Eye in the sky, é um trailer enxuto
e direto, com considerável carga emocional e uma aguda tensão em torno do uso
de uma nova tecnologia de guerra, o drone. De um lado, o filme investe na “humanidade”
dos personagens, nas suas motivações e dilemas; de outro, ele dá atenção às “máquinas”
voadoras, que vão de aviões a aves e insetos de olho e aço. Dessa tensão, nasce
o problema central da trama: as relações de poder entre quem pilota o drone e
quem é vítima dele. O panorama é a luta contra o grupo terrorista al-Shabaab, da Somália. Gente
de vários lugares do mundo, sentados em seus gabinetes e salas blindadas,
coordenam uma ação secreta moldurada por máquinas aéreas que levam o olho da
tecnologia para todos os lugares. Nessa guerra, tudo parece asséptico. Nenhum soldado
em risco. Nenhuma vítima colateral. Até que
surge a garota de vermelho, vendendo pães. A menina pobre faz do filme um
dilema moral, cujo tema perpassa as relações entre técnica e ética,
entre máquina e ser humano. Hood toca, com isso, em um assunto tão delicado quanto
polêmico. Seu filme parece uma faca de dois gumes.
Nenhuma área se dedica tanto à tecnologia quanto
a indústria bélica. Nas suas reflexões sobre a técnica, Hans Jonas assinalou que na era
pré-moderna, a tendência da tecnologia era permanecer por longo tempo como uma
espécie de optimum de competência que
garantia a um determinado grupo social a sua identidade cultural. Como uma
posse e um estado, a tecnologia mudava pouco e tão lentamente, que a palavra revolução,
aplicada a alguns desses contextos, torna-se imprecisa. A única exceção era a técnica
bélica. Por razões óbvias, as novas tecnologias de guerra inventadas por um
povo exigiam rápida absorção (e, de preferência, superação) por parte de seus
inimigos. Tratava-se de uma exigência exterior e dela dependia a sobrevivência
de um povo. Contra as armas de fogo, o arco-e-flecha tornaram-se rapidamente obsoletos.
Contra canhões, as catapultas antigas pareceram piadas. Cavalarias substituíram
as fileiras de soldados em solo. Depois vieram os submarinos, as armas tóxicas,
os foguetes, as bombas de todo tipo, o uso de aviões em batalha e a famigerada bomba
atômica. Ao contrário dos outros campos, na guerra, a tecnologia vive de revoluções,
exige mudanças drásticas patrocinadas pela necessidade de sobrevivência. E seus
impactos se diluem na nossa vida cotidiana de forma impressionante, desde os
nossos fornos de micro-ondas até os agrotóxicos de nossas lavouras. Hoje o uso
de drones na arte da guerra é uma novidade justificada com vários eufemismos, que
azeitam os discursos de “ataques cirúrgicos” e “precisão de laser”. A guerra tem
a exatidão das salas de medicina...
Drones são aparelhos não tripulados que nos deixam em
uma cidade sem muros. Do alto, todos estamos desprotegidos. O Escritório de Jornalismo Investigativo,
uma organização não governamental britânica, afirmou que em 2015, pelo menos 51
pessoas morreram no Paquistão vítimas de ataques americanos com esse tipo de
equipamento, outras 46 no Iêmen e 7 na Somália. O recente livro do filósofo
francês Grégoire Chamayou, intitulado Teoria
do Drone comprova que essas maquininhas não são apenas brinquedos de tirar
fotos. Chamayou mostra bem como guerra e progresso técnico estão intimamente
ligados. O dilema, mais uma vez, está entre o poder e a responsabilidade. Hood
mostra como um drone pilotado em longa distância quebra a vulnerabilidade de
quem exerce o poder e, com isso, instaura uma nova lógica de guerra: o ataque só
coloca em risco a vítima e estabelece uma distância entre a violência e o campo
de comando. Diluem-se as responsabilidades porque minimizam-se as interferências
e preservam-se os afetos. Depois das bombas, os militares dirigem seus carros
para casa, onde dormem sem pesadelos, como se tudo não passasse de um jogo
virtual.
De um lado quem brinca de videogame e de outro quem
morre com as bombas. No meio deles, Hood colocou uma menina vendendo pão
para ajudar a família. Vestida de vermelho, ela roda o bambolê colorido. Pobre e negra ela circula entre terroristas
armados, em plena zona de ataque. Na casa ao lado prepara-se uma ação que pode dizimar centenas de pessoas. Nos seus
gabinetes, governos e militares enfrentam o velho dilema utilitarista: quanto
vale a vida de uma garota diante das centenas de vida que poderão ser
poupadas caso o ataque seja realizado? Estamos em terreno arenoso. O filme
derrapa na indecisão. A trama parece estacionar. Ninguém decide. O soldado
chora. A menina inocente, espera o seu cliente. Sua presença evoca os laços que
o mundo da tecnologia desfez. Para Hood, ao que parece, o olho do drone não
pode ser impassível à vulnerabilidade daquela criança.
De um lado os militares, a altíssima tecnologia da
guerra e todos os seus monitores e lentes superpotentes projetados
futuristicamente. De outro, a pobreza de um bairro de Nairóbi, os
fundamentalismos e as violências de todos os dias, a poeira cinzenta de quem está
aprisionado ao presente. O dualismo fácil é rompido pela criança casta e seus
pães redondos. Ela parece saltar como uma interrogação no meio da nossa lógica de
mundo. Sua presença há de parar as tecnologias de todas as guerras? E ela, há
de sobreviver às violações diárias de seu próprio destino? O olho do alto - que
é o olho de quem filma, o olho de quem vê o filme, o olho de quem pilota o novo
poder, o olho de quem mata sem tocar – há de decidir nossos destinos? Até
quando? A menina, na zona de ataque, é um estorvo moral para a tecnologia – não
só a da guerra, mas todas aquelas que colocam em risco, cotidianamente, as relações
humanas. A menina de Hood está parada no meio de nossas salas de aula, entre
professores displicentes e estudantes seduzidos pelos celulares. A menina de
Hood está parada na nossa sala de estar, em frente à televisão, enquanto a
família, calada, se desconhece. A menina de Hood se detém na calçada, em frente
ao sinal, enquanto nos atropelamos sem tirar o olho das nossas máquinas
portáteis.
De cima, um olho nos vê. Decide nossos destinos. Todo drone tem ganas de ser Deus, o olho que vê tudo. Ele está por todos os lados. Quem haverá de se salvar?
PS. No Brasil, ao que parece, o filme se chama "Decisão de Risco".
De cima, um olho nos vê. Decide nossos destinos. Todo drone tem ganas de ser Deus, o olho que vê tudo. Ele está por todos os lados. Quem haverá de se salvar?
PS. No Brasil, ao que parece, o filme se chama "Decisão de Risco".
boa reflexão, vontade de assistir o filme agora.
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