A MOÇA ME CHAMOU DE OTÁRIO. VOLTEI PARA AGRADECER.
Eu sei, já está parecendo normal. Quando lemos alguma coisa
sobre a atual conjuntura política, caso isso não seja do nosso agrado, parece obrigatório que a gente reaja com algum tipo de obscenidade.
Não nos passa pela cabeça ler com respeito o que o outro está dizendo e, quem
sabe, colocar em xeque as nossas próprias certezas. O calor da hora nos impede
de digerir. Dispépticos, saímos para o ataque esquecendo a receita do velho Sócrates,
o mais sábio de todos, que às vésperas da cicuta, declarou que nada sabia, dando
azo ao melhor exercício de sabedoria.
Pois bem. Declarar sua posição política virou delinquência
e, como tal, deve ser punida com impropérios descontrolados e ofensivas de todo
tipo. Uma amiga professora foi agredida porque não buzinou a favor dos
manifestantes. Outro quase apanhou no banco porque lembrou que a pena de morte
não está instalada no Brasil - nem contra os políticos. Outra quase foi
atropelada por um carro que participava de uma manifestação a favor da justiça
(sim: ela estava de vermelho). A professora de história de um colégio em
Curitiba foi covardemente achincalhada por alguns pais, pretensamente defensores da
ordem e do progresso que querem ensinar a seus filhos, em tempos em que algumas
palavras voltaram a ser perseguidas como criminosas. Frutos podres de uma sociedade
dividida que decreta sua própria falência em atos que beiram a barbárie. Recuamos
aos piores dias...
As redes sociais estão impregnadas dessas imundícies. Todo mundo
tem a sua história. Há gente quase profissional em postar violências contra
quem não estiver falando o que ele quer ouvir. As mensagens chegam de perto e
de longe. Sem nenhum pudor.
A moça se deu ao luxo de me xingar de otário. Era tarde da noite. Poderia estar
dormindo, rezando, fazendo jejum – afinal é semana santa. Não. Decidiu me reprochar,
sem sequer se dar ao trabalho de entender o sentido de minha postagem. Confundiu
tudo em nome da ignorância e dirigiu o seu ódio político contra mim.
Lembrei de uma história a respeito de Nietzsche (ok...
talvez eu não devesse evocar esse nome a essas alturas, mas não me contenho). Ele
teria escrito em uma de suas obras finais, que Jesus era um idiota. Sua irmã Elizabeth, antissemita militante,
não teve dúvidas de remover a palavra da edição sob sua responsabilidade,
inaugurando uma longa trajetória de livros mutilados por gente que não entendeu o sentido da expressão. A palavra de
Nietzsche associava Jesus ao príncipe Míchkin, do romance O idiota, de Dostoiévski e denotava
muito mais do que a palavra corrente sugere. Tratava-se, no fim, de uma análise
psico-fisiológica do Redentor com destaque para certa ingenuidade – e não de um
xingamento.
Pois bem. Como várias outras palavras que usamos para destratar
alguém, otário – assim como idiota – guarda curiosidades. Gabriel Perissé, no seu Palavras e origens, informa que otário
é uma palavra importada da Argentina nos anos 1920, difundida inclusive com a ajuda do tango
Se acabaron los otarios, letra de
Caruso e voz de Gardel (quem resiste?). Na charmosa Buenos Aires dessa época, otário era uma expressão que definia um homem ingênuo, um muchacho ainda detentor das “graças juvenis”. Perissé nos lembra
ainda que a gíria portenha tem raiz científica: designa os leões
marinhos da família Otariidae (do grego otarion,
“orelhinha”) que, pesados e lentos, eram sempre presa fácil dos predadores. No Brasil, claro,
a ingenuidade virou tolice e otário virou palavrão e insulto. Na terra
da malandragem, um otário é sempre um lorpa iludido. Na boca da moça – se eu
entendi bem - otário era cretino, tanso, sonso,
tantã, paspalho e, em consequência, culpado,
criminoso, ladrão. Ela - certamente leitora daquela boa revista semanal e
assídua telespectadora das nossas verdades globais - ao contrário de mim, era esperta, perspicaz, inteligente.
Ali mesmo, no meio da madrugada, o insulto me fez bem. Ele me
ajudou a olhar ao redor. Ver com que eu estava. Confesso sem modéstia: vi artistas, intelectuais e religiosos que eu cresci admirando! Pensei comigo:
todos otários? Estariam eles todos enganados e eu junto? Possivelmente. Há boas
chances. Pode ser até certo. Mas isso não dá direito a ela de me agredir.
Reivindico meu direito à boa ingenuidade - aquela dos muchachos portenhos. Quero ver as coisas sempre sob diferentes pontos de vista e respeitar as posições alheias sem que eu precise praguejá-las. Não tenho nada contra quem se acha esperto e tem certeza de suas convicções. Desde que não impeça as minhas. No fim, a palavra me fez bem. Vim sinceramente agradecer. Aliás, já viram como são lindos os leões-marinhos da família dos otários?
Reivindico meu direito à boa ingenuidade - aquela dos muchachos portenhos. Quero ver as coisas sempre sob diferentes pontos de vista e respeitar as posições alheias sem que eu precise praguejá-las. Não tenho nada contra quem se acha esperto e tem certeza de suas convicções. Desde que não impeça as minhas. No fim, a palavra me fez bem. Vim sinceramente agradecer. Aliás, já viram como são lindos os leões-marinhos da família dos otários?
De uma pedra que atiram na tua direção, você a transforma em castelo. "Ninguém atira pedra em árvores seca". (ditado da grande sabedoria popular). De uma palavra você fez um belo artigo, e com certeza poderia fazer uma tese. Excelente reflexão para os seus alunos. Grata
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