A BONECA SEXUAL DE DESCARTES (E A CRISE BRASILEIRA)




A vida sexual dos filósofos é um assunto no mínimo curioso. Muita gente gosta de entrar pela porta dos fundos da filosofia e ver o que seres pretensamente tão racionais fazem nas horas vagas. René Descartes, por exemplo, nos oferece um precioso material sobre o assunto. Consta que, em 1649, durante sua viagem à Suécia, a convite da rainha Cristina, que queria aprender sobre o sexo e outras paixões, marinheiros teriam descoberto em sua cabine uma “Dame de Voyage”, como eram chamadas na época as bonecas sexuais. A “moça” chamava-se Francine, nome da filha mais jovem do filósofo, com quem ele teria declarado estar viajando, ainda que ninguém jamais tivesse posto os olhos na menina. A boneca, encontrada pelos marujos dentro de uma caixa depois de uma tempestade, teria sido fabricada pelo próprio filósofo em couro e metal, e se movimentava e “comportava” exatamente como humana, tal era a perfeição da arte. Francine era uma espécie de máquina, um autômato, um androide primitivo e precário. Não tardou, contudo, para que o capitão do barco debitasse à presença da boneca os maus agouros da tempestade e outros percalços, em um tempo em que a presença de mulheres em navios dava em urucubaca. Francine foi jogada ao mar. E com ela qualquer indício da veracidade da história. Fato é que Descartes viajou para a Suécia, onde morreu seis meses depois. Fato é que ele tinha uma filha chamada Francine, cuja morte precoce o teria afetado significativamente. Fato é que Descartes manteve, desde cedo, intenso interesse em brinquedos autômatos e no poder das máquinas. Em algumas cartas, encontram-se referências a homens que dançam, pombos voadores e cachorros perseguindo faisões construídos pelo próprio. Fato é, por último, que a anedota serve de metáfora para um interesse comum da cultura ocidental em torno desses brinquedos sexuais e as curiosidades do autor do Tratado das paixões adiantam muitos interesses sobre a vida artificial que mobilizam os homens contemporâneos. 
Amy Wolf descreve a função das Dames de Voyage no seu Anthology of Temptation como uma opção viável para homens que estavam privados de relações sexuais durante longas viagens ao redor dos mares do século XVIII, quando as sereias eram apenas fantasias e as prostitutas dos portos ainda estavam distantes demais. Marujos franceses e espanhóis teriam popularizado o brinquedo devido à sua fácil condução. Leves e maleáveis, ele ocupava pouco espaço no navio, em substituição ao peso, à má-sorte e às demandas trazidas por mulheres reais. Eram petrechos rudimentares, muitas vezes feitos com roupas velhas e couros catingosos, mas tinham a vantagem suplementar de servir a vários homens, o que acabava por tornar o objeto pouco higiênico e, não raras vezes, fonte de doenças venéreas.
Apesar de nenhum exemplar desses artefatos ter sobrevivido, muitas referências a eles ocupam as páginas que tratam da vida sexual da sociedade ocidental. Iwan Bloch descreveu, por exemplo, no seu A vida sexual de nosso tempo, de 1908, a importância das práticas fornicatórias com seres artificiais ou partes artificiais do corpo humano. Ele chama isso de "tecnologia pornográfica" e faz ver que a indústria do sexo tem raízes muito antigas e sua história acompanha os avanços técnicos, o desenvolvimento e a difusão de novos materiais. A descoberta da borracha, por exemplo, em 1745, deu elasticidade e durabilidade aos brinquedos, enquanto o látex em 1928, antes de preservativos, deu prazer de outras formas. Charles Goodyear possibilitou “bons anos” de deleite por ter descoberto, em 1839, uma forma de tornar a borracha resiliente, abrindo um caminho irrevogável para inúmeros tipos de brinquedos sexuais, entre as quais as populares bonecas infláveis do pós-guerra, que passaram a incluir vinil e couros artificiais em benefício de um realismo cada vez mais evidente. Foi na época da II Guerra, além disso, que a Alemanha teria desenvolvido o projeto da BildLilli, a precursora e inspiradora da Barbie e de suas inúmeras conotações sexuais. Hoje estamos diante dos robôs sexuais, cuja tecnologia embarcada promete revolucionar não só a indústria da pornografia como, sobretudo, o futuro da sexualidade humana. Para esses sexbots, a Francine de Descartes foi uma precursora. As gynoids de agora oferecem prazeres inimagináveis, ainda que, segundo sugere Michal Hauskeller no seu Sexo e a condição pós-humana, elas não passem de “aparelhos masturbatórios”. Seria o onanismo, nesse caso, o futuro do sexo pós-humano, digno das ficções de Huxley?
O que o uso desses brinquedos indica sobre nós mesmos? O filme Mulheres perfeitas, dirigido por Frank Oz, com roteiro de Paul Rudnick e estrelado por Nicole Kidman, Glen Close e outras lindas, parece nos dar uma dica que repercutiu, de outra forma, no Her, de Spike Jonze. Mulheres robôs parecem revelar muito sobre as conotações sexuais sublimadas, os medos, os tabus e os machismos que induzem à criação de “seres ideais” sexualmente gratificantes. A literatura está cheia de referências sobre o assunto, desde o paradigma do Pigmaleão (o de Ovídio, o de Shaw e o de outros mais), até o Sandman de Hoffmann e a Eva futura, de August Villiers - só pra citar alguns de uma infinita lista. O que essas histórias têm em comum? Todas falam do desejo masculino de criar uma mulher  perfeitamente controlada e obediente. Um tipo de brinquedo que seja uma mulher em aparência, mas que permaneça passiva e incapaz de qualquer tipo de julgamento. Um esforço que pode ser reduzido à noção de controle: Antony Ferguson no seu The sex doll: a history afirma, nessa perspectiva, “que a boneca sexual feminina é a última mulher sexualmente idealizada pelo homem”. Última, significa, no caso, melhor, superior. A mulher de brinquedo quase sempre é prometida como uma mulher perfeita porque, radicalmente passiva, ela é inocente, imóvel, confiável “e talvez o mais importante, silenciosa”. Com ela o homem adquire completo controle das relações e assume o seu velho papel de macho.
O número de empresas ao redor do mundo investindo dinheiro para desenvolver e aprimorar os brinquedos sexuais é muito grande e aponta para a importância ética e existencial dessa questão. Onde habitam nossos medos também crescem nossos fetiches. Necrofilia, galateísmo, pigmalionismo, estatuafilia, amaurofilia, sonofilia... são palavras cuja carga etimológica remete a heranças antigas e despertam hoje o interesse de muitos pesquisadores do pós e do trans-humanismo em seu projeto de aperfeiçoamento tecnológico do ser humano. A promessa de uma vida sexual gloriosa faz parte da busca pela felicidade. Mudaram os brinquedos, é verdade, mas a base psicológica desse desejo continua a mesma.

PS. Ah sim, já ia me esquecendo de falar da crise brasileira: gente, vamos fazer amor?







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