POR UMA REVOLUÇÃO COPERNICANA NA EDUCAÇÃO
Copérnico revolucionou o mundo científico quando
afirmou que o sol – e não a terra – era o centro do universo. Aprendemos desde
cedo a louvá-lo por isso. No século XVIII o filósofo Immanuel Kant imitou a proeza
no campo filosófico-epistemológico, ao afirmar que não era o sujeito – como até
então se acreditava – que deveria se ajustar aos objetos do mundo exterior, mas
estes deveriam ser regulados pelas capacidades cognitivas da subjetividade. Em outras
palavras, Kant colocou o sujeito (ou a razão) no centro do processo de
conhecimento. Para ele, todo conhecimento sobre o mundo deveria derivar de um
uso seguro da razão. A pretensão revolucionária da filosofia kantiana não
demorou a ser criticada, principalmente pela inflação da racionalidade que ela
provocou. Já de início, Schopenhauer e Nietzsche foram seus primeiros arguidores. Isso não atrapalhou a sua posteridade, contudo.
A educação moderna bebeu da fonte kantiana e assumiu
para si a tarefa de desenvolver as capacidades cognitivas e morais do homem a
fim de torná-lo de fato “humano”. Educar passou a ser compreendido como a
tarefa de preparar o caráter por meio da racionalidade e, com isso, elevar
gradativamente a humanidade à perfeição de si mesma. Estamos no âmbito da
chamada pedagogia iluminista, que não só acentuou a confiança na educação como
meio de aprimoramento do ser humano, mas também celebrou a racionalidade como
mote central desse processo. “Reino dos fins”, o “ser humano é a única criatura
que precisa ser educada”, como escreveu Kant no seu Sobre a pedagogia, acrescentando que “a espécie humana é obrigada a extrair de si mesma,
pouco a pouco, com suas próprias forças, todas as qualidades naturais, que
pertencem à humanidade”. A educação é a ferramenta dessa tarefa tão relevante e
a ela caberia desenvolver procedimentos qualificados
e eficazes para conduzir cada indivíduo à sua perfeição, ou seja, a si mesmo.
Educar passou a ser sinônimo de preparar o caráter, deter
a animalidade pela disciplina, limitar a liberdade à obediência da lei em vista
da sociabilidade. Como fazê-lo, contudo? A receita se desenvolveu aos poucos. Primeiro,
por condições de época, era preciso transferir a tarefa para a escola, a fim de
liberar a família para suas funções primordiais de nutrição e cuidado
econômico. Depois, na escola, fortalecer uma autoridade central, que fosse ao
mesmo tempo um exemplo e um testemunho capaz de transmitir, por atos e palavras, o ideal da humanidade. A seguir,
evitar a promiscuidade das idades e separar por classes, fases, disciplinas. Separar
os saberes de forma que a razão pudesse ser preenchida com conteúdos
organizados – eles mesmos, racionalizados, portanto. Criou-se a lógica da transferência de conteúdos da parte de
quem já os tem sistematizados para aqueles que ainda precisam fazê-lo; de quem
já sabe e já obteve a desejada perfeição, para quem ainda permanece em estado
de incompletude; de quem alcançou a humanidade para quem ainda está constringido
pelos instintos. De quem se diz professor
– o que sabe – para quem é reles aluno
– o que precisa ser tutelado.
Esse modelo persiste nos nossos dias na maioria das instituições escolares, do ensino primário à universidade. Nosso modelo
ainda é o de um professor que deve dar
aula para um aluno que deve aprender.
O primeiro está no centro, radicado em sua sabedoria plena. Para ele montou-se
um tablado e outros mecanismos de poder. O segundo está disposto,
ordenadamente, em fila, à sua frente, geralmente às dezenas. O professor, porque
é pago para dar aula, entra em sala, transfere o conteúdo através de discursos,
lousa cheia e, por vezes, alguma enfadonha tecnologia de projeção que ele mal
sabe como funciona. Cumpre as regras, obedece aos horários, preenche as planilhas
decretadas. O aluno – com felizes exceções - segue sendo aluno. Quando muito, ouve,
anota, devolve no dia da prova o que, milagrosamente, reteve na memória. Não esconde,
contudo, a mesma fadiga que se espelha no rosto cabisbaixo e no discurso
reclamatório de seus mestres. Cresce o desinteresse e a indisciplina. As instituições
de ensino não suportam o peso de si mesmas. Um ambiente de hospital entufa os
corredores.
A superação dessa problemática passa por uma revolução
copernicana no âmbito da educação – estou pensando especialmente na educação
superior - cujos agentes somos eu e você, colegas professores e professoras. Ela teria, no meu ponto de vista, três
pilares: [1] retirar o professor do centro do processo de ensino e de
aprendizagem e colocar o estudante; [2] retirar o enfoque no conteúdo e
transferi-lo para o desenvolvimento de competências que ultrapassem a mera memorização
de temas desencarnados; [3] retirar o conhecimento de dentro da sala de aula e
expandi-lo para todas as instâncias da vida das instituições e da sociedade. Os
especialistas têm chamado isso de abordagens
ativas e oferecido muitas metodologias bastante interessantes para as quais
precisamos estar atentos.
Esses três eixos revelam três estratégias da
revolução copernicana que precisamos começar a desenvolver nas nossas
experiências educativas: [1] centrar na relação; [2] concentrar no problema; [3]
focalizar no processo.
[1]
Estudante no centro. Educação é relação entre pessoas que, no mundo
contemporâneo, estão cada vez mais em igualdade de condições e de acesso ao
conhecimento; não é mais possível pensar uma escola que modele uma pedra bruta.
Na minha experiência acadêmica tenho encontrado cada vez mais pessoas que chegam
para segunda ou terceira graduação, para quarta ou quinta especialização, que
já fizeram outros mestrados e doutorados, mas que, principalmente, têm muitas
experiências que poderiam enriquecer o aprendizado dos seus colegas. Mas o que
faço eu? Nada: monopolizo a fala.
[2]
Competência no centro. Educação é capacidade de enfrentar e, às vezes, resolver
problemas, não apenas deter conteúdo. É preciso saber, mas é também urgente saber
fazer, pensar sobre o que faz, avaliar eticamente os impactos da ação. É preciso
saber agir quando o manual não tem mais respostas. Quando o problema real não
está no manual. Por isso, mais do que conteúdo, a educação deve ajudar o
estudante a aprender a aprender, ou seja, a saber agir em situações concretas. Isso
não se aprende apenas abstratamente, em sala de aula.
[3]
Vida no centro. Por isso, devemos focalizar no processo e não no estado, ou
seja, precisamos entender que a educação não é um momento e não ocorre em um
lugar e muito menos de uma vez por todas. Se o homem é o ser que precisa ser
educado, é porque ele nunca está pronto. Mesmo depois da prova, no semestre que
vem, quando receber o diploma, ser estudante é estar em constante processo de
aprendizado. O que fazemos nós, no geral? Burocratizamos e encaixotamos o conhecimento
e, com isso, educação vira sepultamento e aula, um rito fúnebre.
O conhecimento precisa sangue nas veias. Do contrário,
seguiremos doentes de egipcismo, aquela enfermidade, diagnosticada por Nietzsche
- que se dizia, não esqueçam - médico da cultura. Sem essa revolução, seremos
meros adoradores de múmias conceituais, plantados nos sarcófagos que chamamos
de sala de aula, onde repetimos um requiem na forma de preces mornas e prescrições morais insípidas e
falecidas, cuja ineficácia se atesta na indisciplina reiterada, na falta de
interesse e de motivação, mas, sobretudo, na crescente catástrofe social dos
valores, patrocinada pela desinformação e pela ignorância que fazem suas vítimas à luz do dia e sufocam a
autonomia, o senso-crítico, a dedicação, a cooperação e a tão carcomida e urgente honestidade.
Precisamos que uma pomba atravesse o céu desse
dilúvio...
Depois de muitos anos fora de sala de aula, me atrevo a voltar a estudar. E pensava eu que tudo seria diferente e o que encontro? aulas enfadonhas, professores que se acham o centro do universo e provas e trabalhos acadêmicos arcaicos . Nada mudou. Foi um alivio ver que alguém pensa o saber de forma diferente.
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