MENOS DOUTORA JANAÍNA, MENOS!
Tudo bem: a gente anda nervoso com a política. Mas convenhamos:
a cena da doutora Janaína Paschoal, nessa semana, em ato pelo impeachment, transformou
a solenidade do direito em uma peça inflacionada de dramática impetuosidade. Não à
toa, sua imagem viralizou nas redes sociais como faísca em pólvora seca. O léxico religioso de sua fala é óbvio, seja pelo conteúdo (dualista), seja pelos gestos
(exagerados), seja simbologia (resumida na imagem da cobra).
O dualismo é o modo de abreviar as coisas unicamente a dois
pontos de vista: o certo e o errado, o puro e impuro, o sagrado e o profano, o
bem e o mal. Trata-se de uma visão de mundo muito sedutora e contagiante: todos
queremos esboçar algum significado único, agregador, que nos dê familiaridade e segurança
diante do que é múltiplo, inóspito e até mesmo caótico. Por isso, o dualismo é, em geral,
o modo de pensamento binário de quem tem pouca vontade cognitiva, de quem se acomoda no
raso e tem forte propensão à preguiça e ao desinteresse. Gente que, no geral,
não se dá conta de que o mundo não é, de jeito nenhum, tão simples assim. Ao contrário, que ele é vário e que, finalmente, “a
beleza que o mundo tem é a quantidade de mundos que o mundo contém”, como
escreveu Galeano. Por isso, o dualismo é um crime contra a beleza do mundo. É
uma forma empobrecida e simplista que, diante de um microfone, pode ser tão convincente
quanto perigosa.
O perigo do dualismo é que ele condena com a mesma
rapidez e pobreza que classifica e estereotipa os comportamentos. Para se
salvar do que é complexo, o dualista é rápido no gatilho: julga a partir do
lado que ele considera o certo (que sempre é o seu, claro) e combate quem, por
algum detalhe mínimo, aparente estar de
outro lado. Destaquei o verbo aparentar (parente
de parecer) para chamar atenção sobre o fato de que o dualismo dá sempre
preferência ao âmbito da aparência em
contraposição ao da essência, porque tem
gosto por superfícies. Há tempos o dualismo faz mal para o diálogo. Na política, então, ele é um
desastre: a supervalorização de um lado em detrimento do outro leva à negação de outras
verdades geralmente excluídas do argumento. Ali, aos berros sobre o microfone, a doutora Janaína Paschoal julgou e condenou, dando azo ao discurso contagiante do ódio que anda corroendo a nossa vida política.
Nos gritos e nos gestos alargados da doutora, o discurso
dualista contrapôs os bons aos maus. Do lado dos primeiros, estaria Deus; do lado
dos segundos, o Diabo. De um lado o céu com pombos e do outro, o inferno, com víboras;
com os pombos, a pureza e a luz, com as serpentes, a escuridão e o pecado (que agora
se chama, corretamente, corrupção mas que, claro, só está de um lado, como não?). Esses pares
opostos fazem parte de um léxico antigo, que remonta aos movimentos gnósticos
que estiveram na base do cristianismo primitivo. Desde então são recorrentes nos discursos religiosos
e naqueles que, secularizados, fundamentaram muitas ideologias, cujas tragédias
não devemos esquecer. O dualismo tem um horizonte religioso – no mal sentido da
palavra. Não é à toa que, logo que as imagens do ato do Largo São Francisco viralizaram
na internet, muitos associaram Janaína à menina pastora (hoje professora de Física), Ana Carolina Dias, em
cujo discurso o dualismo pode até ser compreensível, finalmente, ele é fruto de um
pensamento infantil, uma maneira acriançada de ver a realidade. No mundo da pequena
pastora, até entendo que Davi continue lutando contra Golias, entre pedras e
aleluias. No caso da doutora Janaína, para mim, o destempero ultrapassou o sinal vermelho.
É aí que começa o segundo elemento do discurso da
doutora Janaína que me chamou atenção: a crença na redenção. A pequena pastora do
Ministério Palavra de Amor e Vida da Assembleia de Deus do Rio de Janeiro, fala
em libertação do mal e assume a moralização como remédio para a vitória da Luz.
A grande doutora do Largo São Francisco também acredita na salvação. Ela julga
que tirar um partido ou uma presidente terá como resultado óbvio a conquista da
paz perpétua entre os homens e a instalação de um mundo de justiça nas terras
brasileiras. Tudo bem: talvez ela não acredite nisso, mas é o que se deduz do
seu discurso. Não condeno suas crenças. Até admiro. E respeito bastante seu curriculum
lattes. O que interessa é o seu discurso da quarta noite de abril desse nosso
conturbado 2016. O que objurgo nele é a ingenuidade que torna a oradora cega para a sujeira
que vem depois, para a imundície que está também no seu próprio lado, para as
mãos sujas de quem se faz defensor da ordem e dos bons costumes enquanto pactua
privadamente com os mesmos que acusa sob os holofotes, para fazer cena. O que censuro
é a tiflose do senso crítico, que nos obriga a ver mais longe. A atrofia das perspectivas. O que critico é
que a redenção seja o benefício dos bons contra os maus, como se a corrupção não
fosse uma endemia histórica, cotidiana e apartidária que nos atinge a todos, em
maior ou menor escala. E que deve ser uma luta de todos - e não de uns contra os outros.
Por fim, a simbologia da cobra. A doutora recuperou,
no seu discurso, a metáfora usada pelo ex-presidente - aquele do qual não se
pode dizer o nome - e que fazia parte de um contexto no qual a emoção também estava à flor da pele e, no meu modesto ponto de vista, também foi uma referência infeliz. Janaína foi além, contudo: revestiu a imagem com seu manto
ideológico-religioso. Explico-me: em muitas mitologias ao redor do mundo e ao longo dos tempos,
a serpente foi símbolo do elemento cósmico que lembra o solo, a terra, o corpo,
o sangue, o sêmen e todas as outras realidades que a nossa moral, no geral, nos
ensinou a odiar. Ela é a memória da culpa que nos expulsou do paraíso e o sentimento
rastejante de nossa condição mortal, a maldição da escuridão, o perigo ardiloso,
a praga, a perversidade endiabrada, o astuto manhoso e infernal da víbora que
merece ser morta sem piedade. Aliás, matar a víbora é uma espécie de imperativo
moral dos senhores da Luz. O problema do discurso é que fazendo-se embaixadora dos bons costumes, Janaína cometeu a indelicadeza de atentar contra
a modéstia e encarnar o bem sem a solenidade que a tarefa merecia. Seu ritual dramático
de gestos dilatados, de protesto berrado, feições afetadas e espetaculosas (que
inclui o balançar alucinado de uma bandeira, passos de uma coreografia estreita,
mas raivosa e o gingado da cabeleira à moda de Joelma, além de alguns socos no
balcão, claro), a faz caçadora dessas perversas bestas que nos desviam do
paraíso. Nada contra o seu "teatro". Achei até divertido. A simbologia da cobra foi um recurso muito útil porque ele deu à sua peça
de oratória um tom fervoroso e de forte apelo emocional. A partir de agora, todos devem acreditar que a doutora Janaína é o nosso São Jorge em luta contra o dragão, para
libertar as nossas mentes e almas (palavras dela!) da opressão da república da
cobra.
Menos, doutora Janaína, menos! Até porque, parece que
São Jorge, assim, com espada e dragão, foi mesmo só uma lenda. E ele mora na
lua.
uahuahsuhas..... bem menos né pequena Doutora!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirParabéns pela reflexão. Esse "menos" poderá até se ampliar para outros que se acham donos da verdade. Posições extremas colocam em risco e desMOROna uma democracia recém parida.
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